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Março de 1916 [Bandol]

…Estou com tanta fome, simplesmente oca, e visualizando agora com a minha imaginação um lombinho bem assado com bastante molho, purê de rábano e batatas cozidas, quase solucei. Aqui não há nada para comer a não ser omeletes, laranjas e cebolas. O dia está frio, cheio de sol, ventoso – a espécie de dia em que você deseja um tremendo almoço ao meio-dia e uma poltrona à frente da lareira para ficar jiboiando mais tarde. Sinto-me nostálgica em relação à Inglaterra – comida inglesa, o decente desperdício inglês! Como é melhor que estes franceses avarentos, cujos jardins de flores não passam de tigelas de salada em potencial. Não há nenhuma folha na França que você não possa “faire une infusion avec”, nenhum talinho que não seja “bon pour la cuisine”. Por Deus, gostaria de comprar um quilo da melhor manteiga, colocá-la no peitoril da janela e observá-la derreter-se, só para irritá-los. São um bando incômodo e sovina, apesar de todos os seus vivos esforços para juntar dinheiro… As suas casas, por exemplo – que móveis espantosos! – e nenhuma cadeira confortável. Se você quiser conversar, o único remédio é ir para a cama. A alternativa é ficar plantado sobre os pés ou deitar-se no conforto debaixo de um edredom estufado. Compreendo muito bem o porquê do que se chama frouxidão moral francesa. Você é simplesmente forçado a entrar na cama – não importa com quem. Não há outro lugar. Vamos supor que um jovem venha examinar a luz elétrica e se ponha a falar e a apontar para o teto – ou que um amigo apareça para o chá e pergunte se você acredita no Mal Absoluto. Como se pode dar atenção a essas coisas, sentada sobre quatro calombos e uma polegada quadrada de bambu? Muito melhor deitar-se aconchegadamente e entregar-se ao assunto.

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 Depois de ler todo O Idiota mais uma vez, e com bastante cuidado, fiquei um pouco mais perplexa que antes em relação à personagem de  Nastasya Filippovna. Ela não é realmente bem construída. É mal delineada. Enquanto se lê, ao lado de uma certa irritação, cresce uma fascinação frustrada, que quase consegue apagar aquelas primeiras “impressões” realmente maravilhosas que se têm dela. Qual era a verdadeira intenção de Dostoievski?

Os Demônios Chatov e sua esposa.

Há algo terrivelmente significativo na atitude de Chatov para com sua mulher, e quando Dostoievski finalmente lança sobre ele uma luz suave, mas penetrante e reveladora, é impressionante como já tínhamos um bom conhecimento de seu caráter a partir de vagas luzes laterais e de impressões indistintas anteriores. Ele é exatamente o que pensamos dele. Comporta-se exatamente conforme o esperado. Há na sua natureza toda aquela brutalidade e o que se poderia chamar de “teimosia explosiva”. É maravilhosamente trágico que ele, que será destruído em breve, deva compreender de repente – e por meio de uma terceira pessoa, por meio de um bebê aos gritos – o milagre que é apenas estar vivo.

Página 545. “Você já percebeu certamente que estou com as dores do parto – disse ela, levantando o tórax e fitando-o com um olhar vingativo, terrível e histérico, que lhe deformava todo o rosto. – Eu amaldiçoo esta criança, mesmo antes de ter nascido!”

Este olhar vingativo é profundamente verdadeiro.

Como é que Dostoievski sabia desse extraordinário sentimento de vingança, desse gosto pelo risinho – que acomete as mulheres no momento da dor? É uma coisa muito secreta, mas é profunda, profunda. Elas não querem poupar aquele a quem amam. Se ele as ama com a devoção cega que Chatov tinha por Maria, sentem vontade de atormentá-lo, e essa tortura lhes dá um alívio real. Isso tem alguma coisa a ver com o tormento que se observa frequentemente nos casos de paixão dos romances de Dostoievski? As suas mulheres sempre ficam felizes quando atormentam seus amantes? Não, elas também sofrem as agonias do parto. Estão dando à luz os seus novos eus. E nunca acreditam que o parto terá fim.


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