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Novembro de 1921 [Suíça]

21 de novembro     …Um feitiço mau desceu sobre mim. Comecei duas histórias, mas depois as contei e elas se sentiram traídas. É positivamente fatal ceder a essa tentação… Hoje comecei a escrever, seriamente, The Weak Heart – uma história que me fascina profundamente. O que sinto é que precisa, de um modo peculiar, de uma variação mais sutil de “tempos”, do passado para o presente e de volta outra vez ao passado – e de suavidade, leveza, da sensação de que tudo está em botão, com uma pitada de humor na personagem de Roddie. E da sensação de Thorndon Baths [Termas de Thorndon – Nova Zelândia], o úmido, o molhado, o lodoso… não, sei como deve ser feito.

24 de novembro Por que sou perseguida todos os dias da minha vida pela proximidade da morte e sua inevitabilidade? Fico realmente doente com isso! E não posso falar com ninguém. Se conto a J., faço-o infeliz. Se não lhe conto, só tenho a mim para lutar contra a sensação. Estou cansada da batalha. Ninguém imagina quanto.

Hoje à noite, quando a estrela Vésper brilhou pela janela lateral, e as montanhas pálidas estavam tão belas, fiquei sentada pensando na morte. Em tudo o que havia para fazer – na Vida, que é tão encantadora – e no fato de que meu corpo é uma prisão. Mas esse estado de espírito é mau. Só reconhecendo que eu, por ser o que sou, tinha que sofrer isto para cumprir a tarefa que tenho de realizar – só reconhecendo isso, e agradecendo que o trabalho não me foi tirado, é que vou me recuperar. Sou fraca onde devo ser forte.

Por que pensar e existir devem estar sempre em dois planos diferentes? Por que a tentativa de Hegel de transformar processos subjetivos em processos-universais objetivos não vai funcionar? “É arte especial e objeto do pensamento alcançar a existência por outros métodos bem distintos daqueles da própria experiência.” Isto é, a realidade não pode se tornar o ideal, o sonho; não é objetivo do artista promover o seu interesse pessoal, procurar impor sua visão da vida ao mundo existente. A arte não é a tentativa do artista de conciliar a existência com sua visão; é a tentativa de criar o seu próprio mundo neste mundo. O que sugere o tema ao artista é a estranheza em relação ao que aceitamos como realidade. Escolhemos – revelamos – erguemos a um plano mais elevado.

All’s Well that Ends Well

O Primeiro Lorde é digno de atenção. Podia-se pensar que as suas falas e as do Segundo Lorde fossem intercambiáveis; mas ele é uma personagem muito definida, de traços vívidos. Tome-se, por exemplo, a conversa entre os dois no Ato IV Cena III. O Segundo Lorde pede grande segredo sobre o que vai contar.

Primeiro Lorde: “When you have spoken it, ‘tis dead, and I am the grave of it.” [“Depois de você falar, o assunto more, e me torno a sua sepultura.”]

E o seu comentário:

“How mightily sometimes we make us comforts of our losses.” [“Quão poderosamente, às vezes, fazemos de nós próprios os consolos de nossas perdas.”]

O que se segue é excelente:

“The web of our life is of a mingled yarn, good and ill together; our virtues would be proud if our faults whipped them not; and our faults would despair if they were not cherished by our virtues.” [“A teia da nossa vida é de um fio misturado, bem e mal juntos; nossas virtudes se orgulhariam, se nossas falhas não as atormentassem; e nossas falhas se desesperariam, se não recebessem o apoio de nossas virtudes.”]

Gosto muito da natureza disso – não revela o homem? Desiludido, porém achando graça – mundano, mas sem perder o sentimento. Mas eu o vejo como um homem – rápido, cheio de vida e maravilhosamente à vontade entre as suas companhias, no seu ambiente, na sua própria condição e em toda a pequena e sólida terra. Lembra um homem a bordo, propenso a andar de pernas abertas, só para mostrar (mas sem se exibir) como seus pés de marinheiro lhe prestam bons serviços…

O Bobo – “a shrewd knave and an unhappy” [“um velhaco astuto e um infeliz”] – vem avisar a Condessa da chegada de Bertram e seus soldados.

“Faith, there’s a dozen of’em, with delicate fine hats, and most corteous feathers, that bow and nod the head at every man.” [Por minha fé, há uma dúzia deles, com belos chapéus delicados, e penas muito corteses que se inclinam e acenam para todos os homens.”]

Nessa frase há todo o encanto dos soldados sobre cavalos que empinam, tinem e dançam. É um verdadeiro pequeno cortejo. Com que ar o arrogante (e intolerável) Bertram usa sua tira de veludo de dois pelos – com que desprezo sua mão na luva francesa de renda branca se agarra à rédea curta do cavalo prateado. Maravilhosamente ensolarado, com um pouco de brisa. O Bobo, é claro, percebe o caráter cômico de sua vaidade…

Parolles é uma criatura adorável, um bravo pavãozinho dando-se ares de valentão.

“…I am now sir, muddied in Fortune’s mood, and smell somewhat strong of her strong displeasure.” [“…Agora estou enlameado no ânimo da Fortuna, senhor, e exalo o cheiro um tanto forte de seu grande descontentamento.”]

Devo dizer que Helena é uma fêmea aterrorizadora. Sua virtude, sua persistência, seu afinco em correr atrás do odioso Bertram (e disfarçada de peregrino – tão típico!), e depois contar toda a história para a boa viúva! E essa estranha e submissa Diana! Quanto a se deitar na cama de Diana e desfrutar os abraços dirigidos a Diana – bem, não sei de nada mais revoltante. Só uma mulher respeitável para fazer uma coisa dessas. O pior de tudo é que bem posso imaginar… por exemplo, agir exatamente dessa maneira e dar depois um presente a Diana. Que taça de chá a viúva e D. devem ter saboreado enquanto tudo se passava, ou D. no último momento quis voltar atrás? Mas perdoar uma mulher dessas! Entretanto, Bertram perdoava. Nele há uma espécie de infantilidade que o torna estúpido bastante para aceitar qualquer coisa.

O Velho Rei é uma antiga carta excêntrica – parece ter a mania de dar maridos às mulheres. Como se um fiasco não fosse suficiente, mal Diana acabou de se explicar, ele começa:

“If thou be’st yet a fresh uncropped flower
Choose thou thy husband, and I’ll pay thy dower.”

“Se você ainda é uma flor fresca não colhida
Escolha um marido que lhe darei o dote.”

Acho que Shakespeare deve ter se dado conta da graça disso. No último momento da peça, esse toque cômico dá vida ao velho tolo.

 

Hamlet

Coleridge sobre Hamlet. “Ele usa o truque sutil de fingir que representa, só quando está muito perto de ser o que desempenha.”

…Assim todos começamos por representar e quanto mais perto chegamos do que seríamos, mais perfeito o nosso disfarce. Por fim sobrevém o momento em que não estamos mais representando; pode até nos pegar de surpresa. Talvez olhemos perplexos para nossa plumagem não mais emprestada. Os dois se misturaram; o que simulávamos uniu-se ao que era; a representação tornou-se ação. A alma aceitou esta libré como sua, depois de um tempo de ensaios e aprovações.

Representar… ver a nós próprios desempenhando o papel – fazer um gesto maior do que seria o nosso na vida real – declamar, pronunciar, até exagerar. Persuadir a nós mesmos? Ou os outros? Ganhar coragem? Fazer mais do que é preciso para poder realizar ce qu’il faut.

Além disso, Hamlet é sozinho. O solitário sempre representa.

Mas podia escrever mil páginas sobre Hamlets.

A cena da loucura. Se vista com um olho frio, é realmente bem pobre. Seu efeito depende totalmente da frágil Ofélia. O Rei e a Rainha de cartolina são, é claro, apenas espectadores. Não ligam a mínima. Acho que a Rainha fica particularmente um tanto surpresa com um ou dois versos de suas canções… E quem acredita que uma violeta solitária murchou quando aquele velho pomposo, tolo e intrometido morreu? Quem acredita que Ofélia realmente o amou, e não deu graças a Deus ao pensar que o café da manhã seria tranquilo sem os seus sermões?

A fala da Rainha depois da morte de Ofélia é exasperadora para nossa noção de verdade poética. Se ninguém viu a morte – se ela só foi encontrada depois de ter se afogado, como é que a Rainha sabe como aconteceu? O querido Shakespeare esteve na Academia Real… para o seu retrato.

 

Antony & Cleopatra

Ato I. Cena 4.

“Like to a vagabond flag upon the stream
Goes to and back, lackeying the varying tide,
To rot itself with motion.”

“Como uma bandeira errante sobre o rio
Vai e volta, bajulando a maré vária,
Para deteriorar-se com o movimento.”

Palavras maravilhosas! Posso servir-me delas. Contêm uma história. Em certo momento parece que as ervas daninhas são alcançadas e afundam; desaparecem no mar e se perdem. Mas chega um dia, uma maré igual, uma ocasião semelhante, e as ervas daninhas reaparecem ainda mais repulsivamente deterioradas! Será que ele…? Vai ele…? Há cartas? Nenhuma carta? O correio? Ele sente falta de mim? Não. Então que tudo seja varrido para o mar. Limpe-se a água para sempre! Vou escrever sobre isto um dia.

“Thy cheek so much as lanked not.” [“Tua face nem sequer emagreceu.”]  A concisão da fala.

 *

 Cena 5. “Tawny-finned fishes… their shiny jaws…” [“Peixes de barbatanas fulvas… suas mandíbulas brilhantes…”] Os adjetivos parecem parte dos substantivos quando Shakespeare os usa. Eles lhes dão uma graça bela, acompanham-nos e os enfeitam modestamente, porém com muito talento. Com escritores menores acontece frequentemente que percebemos mais os servos que os mestres, e esquecemos completamente que seu papel é servir, aumentar, amplificar o poder do mestre.

“Ram thou thy fruitful tidings in my ears
That long time have been barren.”

“Crava tuas notícias fecundas nos meus ouvidos
Que há muito tempo estão áridos.”

Bons versos! Outro exemplo da escolha do lugar das palavras. Suponho que fosse instintivo. Mas “fruitful” parece estar exatamente onde deveria estar, para ser resolvida (no sentido musical) pela palavra “barren”. Lê-se “fruitful” esperando “barren” quase a partir do “sentido sonoro”.


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