Há algum tempo tive a oportunidade de escutar duas leituras comentadas de Hamlet que me fizeram pensar. Procurava-se compreender a complexidade da grande tragédia com uma análise da trama, principalmente seus aspectos políticos. Esse caminho se mostrou equivocado nos dois casos, sem que muito do que é dito na peça recebesse luz.
Nada contra examinar questões políticas nas grandes obras do passado. Shakespeare escreveu peças políticas fantásticas. Basta lembrar a reflexão sobre tirania em Ricardo III – aliás, essa obra deveria ser encenada em todo o mundo ocidental de nossos dias, para que a frase célebre ecoasse por toda parte como um alerta: “Meu reino por um cavalo!”
Quanto às grandes tragédias (eu me refiro principalmente a Macbeth e Hamlet), talvez a mundanidade da política ocupe nelas um lugar de menor destaque. Esta é a minha conjetura.
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Stephen Greenblatt publicou em 2004 uma biografia de Shakespeare, Will in the World. How Shakespeare Became Shakespeare. Como não podia deixar de ser, em virtude da polêmica da autoria (nem comentada por Greenblatt) e da falta de dados sobre Shakespeare dramaturgo, grande parte do livro é ficção. Ficção bem escrita, diga-se de passagem. A tragédia Hamlet foi criada a partir de uma lenda dinamarquesa que relata o assassinato de um rei por um usurpador, crime a ser vingado pelo príncipe Hamlet que com isso retomaria o reino de seu pai. Essa trama era lugar comum na época. Com muita propriedade, não sei se por algum indício registrado em documentos ou por mera especulação, Stephen Greenblatt sugere aquilo que atraiu Shakespeare na lenda da Dinamarca. Para vingar o pai, Hamlet se finge de louco. Foi por esse caminho que Shakespeare enveredou para escrever a tragédia.
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No começo da peça, enquanto Hamlet e seus companheiros Horatio e Marcellus aguardam uma possível aparição do fantasma do rei assassinado, o quadro de uma sociedade corrompida é pintado por um comentário de Marcellus:
“Something is rotten in the state of Denmark”
Ato I, Cena IV
Ainda sob o impacto da morte do pai, Hamlet parece perplexo nas suas tentativas de compreender a realidade então fraturada.
“There are more things in heaven and Earth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy”
Ato I, Cena V
Um dos principais baques é a percepção da morte participando na vida:
“O, that this too too solid flesh would melt
Thaw and resolve itself into a dew!
Or that the Everlasting had not fix’d
His canon ‘gainst self-slaughter! O God! O God!
How weary, stale, flat and unprofitable,
Seem to me all the uses of this world!
Fie on’t! O fie! ‘tis an unweeded garden,
That grows to seed; things rank and gross in nature
Possess it merely.”
Ato I, Cena II
No Ato I, Cena II, a rainha lembra a Hamlet que é comum a morte ceifar a vida:
“Do not for ever with thy vailed lids
Seek for thy noble father in the dust:
Thou know’st ‘tis common; all that lives must die,
Passing through nature to eternity.”
Ao que Hamlet responde:
“Ay, madam, it is common.”
Pergunta a rainha:
“If it be,
Why seems it so particular with thee?”
A resposta de Hamlet revela o drama em que se debate:
“Seems, madam! nay, it is; I know not ‘seems’.
Tis not alone my inky cloak, good mother,
Nor customary suits of solemn black,
Nor windy suspiration of forc’d breath,
No, nor the fruitful river in the eye,
Nor the dejected havior of the visage,
Together with all forms, moods, shapes of grief,
‘That can denote me truly. These indeed seem,
For they are actions that a man might play;
But I have that within which passeth show-
These but the trappings and the suits of woe.”
Ato I, Cena II
A morte entrando em cena pelo assassinato do rei veio desfazer o real, que passou a parecer mais um baile de máscaras. A mudança se torna mais aguda para Hamlet diante da rainha, sua mãe.
“That it should come to this!
But two months dead! Nay, not so much, not two.
So excellent a king, that was to this
Hyperion to a satyr; so loving to my mother
That he might not beteem the winds of heaven
Visit her face too roughly. Heaven and earth!
Must I remember? Why, she would hang on him
As if increase of appetite had grown
By what it fed on; and yet, within a month-
Let me not think on’t! Frailty, thy name is woman!”
Ato I, Cena II
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Esse tema da diferença entre o que é e o que parece ser encontra ressonância na chegada dos atores à corte da Dinamarca. Hamlet saúda os amigos e reflete sobre a realidade e a representação da realidade no palco, isto é, sobre o que é e o que finge ser.
“O, what a rogue and peasant slave am I!
Is it not monstrous that this player here,
But in a fiction, in a dream of passion,
Could force his soul so to his own conceit
That from her working all his visage wann’d,
Tears in his eyes, distraction in’s aspect,
A broken voice, and his whole function suiting
With forms to his conceit? and all for nothing!
For Hecuba?
What’s Hecuba to him, or he to Hecuba,
That he should weep for her?”
Ato II, Cena II
A reflexão de Hamlet chega a ponto de combinar com os atores que representassem a cena do envenenamento de um rei, visando a que as máscaras do palco fizessem cair as máscaras do real.
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No desenrolar da trama, o desconcertante é que Hamlet hesita em cumprir o seu papel, isto é, vingar o pai. No início da peça, o fantasma do rei assassinado aparece como que para lembrar ao filho seu destino. Ato após ato, surgem oportunidades para a vingança, sempre adiadas porque Hamlet quer certezas sobre quem matou seu pai, ou porque não considera ser a hora apropriada para dar cabo do assassino. Uma hesitação que o espectador não compreende bem, principalmente porque Hamlet, disso não há dúvida, é um homem de ação.
A leitura do público comum é que Shakespeare apresenta uma reflexão sobre a ação humana, uma busca pelas suas razões. Basta perguntar a habitantes do Ocidente, familiarizados ainda que superficialmente com a literatura inglesa, se eles conhecem Hamlet. A resposta vem rápido: “Hamlet? Sim, “To be or not to be, that is the question”. Todos sabem qual é o tema da tragédia.
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Ésquilo tem uma trilogia chamada Oresteia em que ele questiona a inexorabilidade da sequência crime-vingança que aprisiona o destino humano. Tanto que a última peça da trilogia se chama Eumênides, quando as terríveis Parcas são substituídas por entidades que traçam um destino sem tanta violência.
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Hamlet parece seguir os passos de Ésquilo na sua busca de sentido:
“… Who would fardels bear,
To grunt and sweat under a weary life,
But that the dread of something after death,
The undiscovered country, from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of?”
Ato III, Cena I
E mergulha numa reflexão sombria sobre a ação humana:
“Thus conscience does make cowards of us all,
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o’er with the pale cast of thought,
And enterprises of great pith and moment,
With this regard their currents turn awry
And lose the name of action.”
Ato III, Cena I
A hesitação de Hamlet não acontece por medo ou outro impulso humano, mas por sua tentativa de compreender o mistério de nascer, morrer e viver, aquilo que dá corpo e substância às ações humanas.
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Na sua busca de compreensão, Hamlet revela que no embate com o real o homem não é louco, ainda que assim pareça.
“I am but mad north-north-west: when the wind is
southerly I know a hawk from a handsaw.”
Ato II, Cena II
O labirinto é ou parece sem saída, com baques a cada esquina como a morte de Ophelia, mas Hamlet se debate com valentia na sua angústia:
“There’s a divinity that shapes our ends,
Rough-hew them how we will- “
Ato V – Cena II
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Nas tragédias gregas, o herói trágico é destruído por tentar ir além dos limites de seu ser. A busca de sentido nas ações humanas, quando já não se percebe com nitidez o que é e o que não é, isto é, quando os limites que definem o ser foram borrados, não transforma Hamlet na grande tragédia do homem moderno?
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Shakespeare escreveu na época do final do Renascimento e primeiras fases do Pós-Renascimento, quando o pensamento humano passou de teocêntrico para antropocêntrico. Esse foco central no homem infiltrou no modo de compreender o real toda a precariedade da mente humana. Hamlet talvez seja uma introdução à tragédia de um mundo sem Deus. Nunca havia refletido sobre Shakespeare nesses termos, mas tive de reconhecer que o pensamento cristão já existia na época e devia ser levado em conta pelos pensadores de então.
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Ainda me espanto de ter me aventurado a escrever esta nota ínfima sobre um texto gigante e uma das minhas leituras preferidas. A única possibilidade talvez fosse repetir o conto de Jorge Luis Borges – “Pierre Menard, autor do Quixote”. O que me levou a enfrentar o ridículo da nota é que as leituras comentadas da peça com foco na trama política chegaram a conclusões absurdas sobre Hamlet – ele seria um suicida e um homicida por não compreender a política humana. O meu amor por Hamlet é que ficou ferido com essas observações. A esse respeito, estou com Shakespeare e não abro. No final da tragédia, as palavras de Hamlet antes de morrer são:
“The rest is silence”
Ato V, Cena II
E seu amigo Horatio sela o destino do príncipe que ousou pensar:
“Now cracks a noble heart. Good-night, sweet prince;
And flights of angels sing thee to thy rest.”
Ato V, Cena II