Porto Alegre é uma cidade que tem seu poeta próprio, e ele se chama Mario Quintana.
O velho poeta, como ele se autodenominou na dedicatória do autógrafo que concedeu à minha mãe, tinha olhos de criança para ver o mundo.
‘Todos esses que aí estão atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!”
É bom lembrar o poeta pelo que escreveu, porque ele declarou num encontro de literatura que a parte de que mais gostava nos artigos sobre seus poemas eram as citações.
Nos tempos de antigamente, quando o jornal de Porto Alegre era “O Correio do Povo”, Mario Quintana assinava uma coluna chamada “Caderno H”. Foi entre esses pensamentos avulsos que encontrei certo dia a seguinte preciosidade, que nunca mais escapuliu da minha mente.
CADERNO H
DO IDEAL
As lagartas não podem acreditar na lenda – tão antiga entre o seu rastejante e esforçado povo – de que um dia serão borboletas… e toda a sua felicidade consiste em relembrar, às vezes, o absurdo e maravilha desse velho sonho.
Ora, neste ano da graça de 2022, em janeiro para ser mais preciso, foi encontrado um poema inédito de Mario Quintana. Estava escrito numa folha de papel perdida entre as páginas de um livro, repassado a uma livraria como parte do lote de uma biblioteca particular. Quem descobriu a raridade foi o livreiro.
O título é “Canção do Primeiro do Ano”, e a data anotada 1º de janeiro de 1941.
Canção do primeiro do ano
Pelas estradas antigas
As horas vêm a cantar.
As horas são raparigas,
Entram na praça a dançar.
As horas são raparigas…
E a doce algazarra sua
De rua em rua se ouvia.
De casa em casa, na rua,
Uma janela se abria.
As horas são raparigas
Lindas de ouvir e de olhar.
As horas cantam cantigas
E eu vivo só de momentos,
Sou como as nuvens do céu…
Prendi a rosa dos ventos
Na fita do meu chapéu.
Uma por uma, as janelas
Se abriram de par em par.
As horas são raparigas…
Passam na rua a dançar.
Janela da minha vida,
Aberta de par em par!
As horas cantam cantigas
E, de novo, sem lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Em tuas mãos distraídas…
Mario Quintana
P. Al. 1/1/41
Uma estranheza de paralelos não me passou despercebida. O poema canta o início de 1941, a sua descoberta tardia vem cantar o princípio de 2022. O mundo estava em guerra em 1941, o mundo está em guerra em 2022. Como seria de esperar, a canção reflete o passar do tempo que, em tempos de guerra, se torna mais premente.
Disse o poeta americano Robert Frost:
“In three words I can sum up everything I’ve learned about life: it
goes on.”
“Em três palavras posso resumir tudo o que aprendi sobre a vida: ela segue adiante.”
É uma visão desconsolada da vida.
Há rios e oceanos de distância entre a falta de luz sentida pelo americano e as janelas abertas e as raparigas a cantar anunciadas por Mario Quintana, ainda que ele só viva de momentos como as nuvens do céu…
Mesmo em anos de guerra, mesmo conhecendo a fragilidade e talvez inutilidade de seu esforço, ele insiste em atirar “a rosa dos sonhos em tuas mãos distraídas…”
Afinal, é preciso sempre relembrar “o absurdo e maravilha desse velho sonho”.
Rosaura Eichenberg
O mundo está em guerra. Quem ainda não sabe deve ajustar as lentes de seus olhos. São tempos difíceis e sofridos.
Com esta realidade de pano de fundo, vale relembrar o filme “Casablanca”, pois talvez seja de grande ajuda ver como os homens do passado resistiram e sobreviveram a tempos sem respeito pela vida e pela humanidade.
Abaixo a letra da música que impregna todo o filme, uma celebração melancólica da luta humana que não pode ter fim as time goes by.
You must remember this,
A kiss is just a kiss.
A sigh is just a sigh.
The fundamental things apply,
As time goes by.
And when two lovers woo,
They still say “I love you.”
On that you can rely.
No matter what the future brings,
As time goes by.
Moonlight and love songs,
Never out of date.
Hearts full of passion,
Jealousy and hate.
Woman needs man,
and man must have his mate.
That no one can deny.
It’s still the same old story,
A fight for love and glory,
A case of do or die.
The world will always welcome lovers,
As time goes by.
Rosaura Eichenberg
No Réquiem de Mozart, existe um trecho – Offertorium – que há muito tempo me deixou perplexa e me fez pensar. Até hoje é um mistério para mim o que escutei e escuto. Uma experiência auditiva muito individual e específica, mas acho que vale a pena registrá-la.
Offertorium
Domine Jesu Christi, Rex gloriae,
libera animas omnium fidelium
defunctorum de poenis inferni
et de profundo lacu.
Libera eas de ore leonis,
ne absorbeat eas tartarus,
ne cadant in obscurum
Sed signifer sanctus Michael
repraesentet eas in lucem sanctam
Quam olim Abrahae promisisti
et semini ejus.
Ofertório
Senhor Jesus Cristo, Rei da glória,
liberta as almas de todos os fiéis
defuntos das penas do inferno
e do lago profundo.
Liberta-as da boca do leão,
que não sejam tragadas pelo Tártaro,
nem caiam nas trevas.
Mas que o santo porta-estandarte Miguel
as represente na luz santa.
Como outrora prometeste a Abraão
e a toda sua descendência.
Na interpretação do maestro Herbert von Karajan, acontece uma coincidência quando as vozes se sobrepõem umas às outras ao cantar o texto. Trata-se de uma coincidência específica, porque não a encontrei nas interpretações de outros maestros. E também porque essa coincidência faz soar uma frase em português, minha língua que está longe de ser amplamente conhecida.
Trata-se do final do texto, quando cantam Quam olim Abrahae promisisti. A superposição das vozes resulta em
aaaaaaaaaaaaaaAmor é carne Amor existe.
Neste Natal, quando “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”, é um alento de esperança em nossas preces escutar que
aaaaaaaaaaaaaaaaaaAmor existe.
Rosaura Eichenberg
Sonhar o sonho impossível,
Sofrer a angústia implacável,
Pisar onde os bravos não ousam,
Reparar o mal irreparável,
Amar um amor casto à distância,
Enfrentar o inimigo invencível,
Tentar quando as forças se esvaem,
Alcançar a estrela inatingível:
Essa é a minha busca.
– O Homem de la Mancha – filme de 1972 dirigido por Arthur Hiller
– Dom Quixote de La Mancha – Miguel de Cervantes
A Room of One’s Own é um ensaio literário escrito por Virginia Woolf e publicado em 24 de outubro de 1929. Trata-se de uma tese sobre a posição da mulher na esfera da literatura. Virginia Woolf propõe que a mulher carece de um espaço próprio em que possa exercer sua criatividade e escrita, pois a sua lida diária nos afazeres domésticos e cuidados com os filhos a confinam num canto espremido de sua vida interior sem que tenha como se desenvolver. A certa altura Virginia Woolf pergunta: “Onde está a irmã de Shakespeare?”
Como todo texto escrito por Virginia Woolf, as frases não têm como ser mais refinadas, precisas e elegantes. Mas a leitura prazerosa não encobre o fato de que se trata de um texto militante – e o grau de incompatibilidade entre militância e literatura é alto. O ofício de escritor exige um olhar bem mais amplo e aberto do que o foco intenso, mas restrito dos militantes.
Um dado chama a atenção no texto de Virginia Woolf. Ela escreveu o ensaio no início do século XX – o século XIX presenciou um desenvolvimento extraordinário do romance inglês. Ao ler o ensaio, impossível não pensar em Emily Brontë, Jane Austen e George Eliot, três escritoras superlativas, sem falar em tantas outras mulheres que brilharam na arena literária como a própria irmã de Emily Brontë. Virginia Woolf fala em Jane Austen, a quem atribui as frases mais bem escritas na língua inglesa. Vindo de Virginia Woolf, é um elogio e tanto.
Resultado: depois da leitura desse ensaio tão bem escrito, o que vem à mente é que na Inglaterra do século XIX não havia falta de quartos próprios para as mulheres escritoras.
Rosaura Eichenberg
“À des amants, il faut la solitude.”
Ste. Thérèse de Lisieux
Rosaura Eichenberg
To me the sea is a continual miracle,
The fishes that swim—the rocks—the motion of
the waves—the ships with men in them,
What stranger miracles are there?
WALT WHITMAN
Para mim o mar é um contínuo milagre,
Os peixes a nadar – as rochas – o movimento
das ondas – os navios com os homens dentro,
Que milagres mais estranhos haverá?
Rosaura Eichenberg
Van Morrison e Eric Clapton são dois grandes artistas da música popular britânica. Em nossos tempos sombrios, revelaram ter a coragem de dar com sua música uma resposta altiva aos que querem escravizar a humanidade. Van Morrison escreveu um blues contra os lockdowns, Stand and Deliver, Eric Clapton o cantou.
Os inimigos da humanidade ordenam – Stand and Deliver (Expressão comum nos assaltos na estrada ou na coleta de impostos). A resposta/pergunta é – Do you wanna be a free man or do you wanna be a slave? Pelo jeito, nem Van Morrison nem Eric Clapton deixaram que lhes enfiassem o medo no coração.
E alertam – You better look out, people, before it gets too late.
Stand and deliver
You let them put the fear on you
Stand and deliver
But not a word you heard was true
But if there’s nothing you can say
There may be nothing you can do
Do you wanna be a free man
Or do you wanna be a slave?
Do you wanna be a free man
Or do you wanna be a slave?
Do you wanna wear these chains
Until you’re lying in the grave?
I don’t wanna be a pauper
And I don’t wanna be a prince
I don’t wanna be a pauper
And I don’t wanna be a prince
I just wanna do my job
Playing the blues for friends
Magna Carta, Bill of Rights
The Constitution, what’s it worth?
You know they’re gonna grind us down, ah
Until it really hurts
Is this a sovereign nation
Or just a police state?
You better look out, people
Before it gets too late
Van Morrison
Rosaura Eichenberg
Encontram-se fariseus na Bíblia com certa frequência. Uma explicação do significado de seu nome é fornecida por Hadriano Simon em Praelectiones Biblicae Novum Testamentum. A palavra fariseu tem origem hebraica – perushim (de parash = separar). Do hebraico passou para a forma grega – ϕαρισαιοι, isto é, fariseus = separados. Não eram assim chamados porque evitassem o contato com os pagãos, pois separar-se dos gentios era comum entre os judeus. Eles evitavam o povo, de quem insistiam em se manter separados.
Em seus comentários sobre o Evangelho de São Mateus, Santo Tomás de Aquino comenta a malignidade dos fariseus. “Fariseus, isto é, separados, porque perversamente interpretavam, convertendo o bem em mal (Eclesiástico 11,33).” E mais: “Neles vemos um exemplo e tipo dos que não querem crer, para os quais não bastam nem os argumentos mais manifestos, porque, obscurecendo o intelecto com a malícia da vontade, enganam-se a si mesmos com vãos raciocínios.”
Em nossos tempos, as ideologias dominantes estão infestadas de fariseus. É verdade que, como os fariseus bíblicos, eles interpretam perversamente e convertem o bem em mal. Mas o que chama atenção é que, como na análise de Santo Tomás, 1) eles não querem ver a verdade – se Santo Tomás fala da verdade divina dizendo que eles não querem crer, os “fariseus” atuais nem querem reconhecer a realidade dos fatos. 2) Eles obscurecem o intelecto com a malícia da vontade – como querem ver apenas o que serve a seus interesses, o intelecto deixa de funcionar a contento. Por isso, não compreendem nem aceitam argumento algum, inviabilizando qualquer tentativa de discussão. 3) Eles se enganam a si mesmos com vãos raciocínios – tudo o que falam é um engano para si mesmos e para os outros, o que torna seus raciocínios vãos para usar o termo elegante de Santo Tomás. De maneira bem mais grosseira, diríamos que acabam em puro besteirol.
Interessante observar um dado nessa comparação entre os fariseus da Bíblia e os de hoje em dia. Conforme o significado da palavra fariseu, eles se mantinham apartados do povo. Um dos traços da ideologia esquerdista é o imenso desprezo pelo povo, que eles consideram apenas massa de manobra. Não sei se a ideologia global dominante é tão somente esquerdista, mas seus agentes certamente se apartam do povo no sentido de que não querem contato com a realidade.
A guerra tomou conta do nosso planeta. Um dos requisitos da defesa é conhecer o inimigo, por isso essa reflexão de Santo Tomás sobre os fariseus é oportuna.
Rosaura Eichenberg
Dois comentários sobre o romance de Herman Melville me reavivaram a memória da leitura desse grande livro. Melville não é um escritor fácil – como quem não quer nada, ele conduz o leitor a meditar sobre temas que em geral estão muito além de nossa compreensão. Os textos de Melville sempre me causaram a impressão de eu pouco ter compreendido e um fascínio impregnado de medo pelo desejo de conhecer.
Bartebly, the Scrivener foi a última história de Melville que li, e num momento em que me encontrava debilitada por uma fratura no ombro depois de uma queda na rua. Li desprevenida e gelei quando me vi mergulhada num conto de terror.
A leitura de Moby Dick é bem mais antiga. E o vislumbre da imensidão da minha ignorância tinha a cor branca da baleia que devora todas as cores. Entretanto, gravadas na memória como brasas incandescentes, estão as primeiras páginas da história. Ishmael – o narrador, “Call me Ishmael” – vagueia pela vila portuária com uma inquietação no coração, uma melancolia que não vai embora. Há um crescendo nos parágrafos até que ele chega à límpida conclusão – era tempo de se fazer ao mar.
Quando li esse começo de história, experimentei a sensação de já ter lido aquelas frases muitas vezes, há muito tempo. O mar sempre me fascinou, mas desde criança ele me amedronta. Adolescente, eu só queria ler livros tendo o mar como personagem, mas na praia eu não incorporava a audácia dos piratas. Por isso, é um mistério que a minha memória de Moby Dick seja este anseio de Ishmael. Se alguém me fala de Moby Dick, eu quase sempre me pego pensando se não está na hora de me fazer ao mar.
Rosaura Eichenberg