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30.01.2022 – Mario Quintana

 

Porto Alegre é uma cidade que tem seu poeta próprio, e ele se chama Mario Quintana.

O velho poeta, como ele se autodenominou na dedicatória do autógrafo que concedeu à minha mãe, tinha olhos de criança para ver o mundo.

‘Todos esses que aí estão atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!”

É bom lembrar o poeta pelo que escreveu, porque ele declarou num encontro de literatura que a parte de que mais gostava nos artigos sobre seus poemas eram as citações.

Nos tempos de antigamente, quando o jornal de Porto Alegre era “O Correio do Povo”, Mario Quintana assinava uma coluna chamada “Caderno H”. Foi entre esses pensamentos avulsos que encontrei certo dia a seguinte preciosidade, que nunca mais escapuliu da minha mente.

  

CADERNO H

DO IDEAL

As lagartas não podem acreditar na lenda – tão antiga entre o seu rastejante e esforçado povo – de que um dia serão borboletas… e toda a sua felicidade consiste em relembrar, às vezes, o absurdo e maravilha desse velho sonho.

 

Ora, neste ano da graça de 2022, em janeiro para ser mais preciso, foi encontrado um poema inédito de Mario Quintana. Estava escrito numa folha de papel perdida entre as páginas de um livro, repassado a uma livraria como parte do lote de uma biblioteca particular. Quem descobriu a raridade foi o livreiro.   

O título é “Canção do Primeiro do Ano”, e a data anotada 1º de janeiro de 1941.

 

Canção do primeiro do ano

 Pelas estradas antigas
As horas vêm a cantar.
As horas são raparigas,
Entram na praça a dançar.

As horas são raparigas…

E a doce algazarra sua
De rua em rua se ouvia.
De casa em casa, na rua,
Uma janela se abria.

As horas são raparigas
Lindas de ouvir e de olhar.

As horas cantam cantigas

E eu vivo só de momentos,
Sou como as nuvens do céu…
Prendi a rosa dos ventos
Na fita do meu chapéu.

 

Uma por uma, as janelas
Se abriram de par em par.
As horas são raparigas…
Passam na rua a dançar.

Janela da minha vida,
Aberta de par em par!

As horas cantam cantigas

E, de novo, sem lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Em tuas mãos distraídas…

 

                                               Mario Quintana

P. Al. 1/1/41

 

Uma estranheza de paralelos não me passou despercebida. O poema canta o início de 1941, a sua descoberta tardia vem cantar o princípio de 2022. O mundo estava em guerra em 1941, o mundo está em guerra em 2022. Como seria de esperar, a canção reflete o passar do tempo que, em tempos de guerra, se torna mais premente.

Disse o poeta americano Robert Frost:

“In three words I can sum up everything I’ve learned about life: it
goes on.”

“Em três palavras posso resumir tudo o que aprendi sobre a vida: ela segue adiante.”

É uma visão desconsolada da vida.

Há rios e oceanos de distância entre a falta de luz sentida pelo americano e as janelas abertas e as raparigas a cantar anunciadas por Mario Quintana, ainda que ele só viva de momentos como as nuvens do céu…

Mesmo em anos de guerra, mesmo conhecendo a fragilidade e talvez inutilidade de seu esforço, ele insiste em atirar “a rosa dos sonhos em tuas mãos distraídas…”    

Afinal, é preciso sempre relembrar “o absurdo e maravilha desse velho sonho”.  

 

 

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