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23.12.2017 – Meu Vô

MEU VÔ

Um probre homem

PUBLICADO HÁ 90 ANOS, O LIVRO DE CONTOS UM POBRE HOMEM, QUE MARCOU A ESTREIA DE DYONELIO MACHADO, ESTÁ GANHANDO UMA REEDIÇÃO. A NETA DO ESCRITOR ESCREVEU A APRESENTAÇÃO DO VOLUME, EM TEXTO QUE ZH REPRODUZ A SEGUIR

Sou neta do Dyonelio Machado. Sei disso desde pequena, porém, só ao longo da minha vida é que fui entendendo a delícia e a dor dessa genealogia. Escritor famoso, político importante, presidiário comunista, maldito, odiado, amado e sempre verdadeiro. E o melhor, antes de tudo, meu vô: o primeiro a me pegar no colo, a apreciar meus desenhos, a me oferecer um copo de vinho, a me indicar os clássicos da literatura e, mesmo hesitante, a me emprestar um livro de orientação sexual.

Nossa amizade surgiu da vivência, não da literatura. Contar coisas nossas beira a intimidade e talvez não interesse a muita gente, mas é isso que revela e humaniza o personagem autor de Os Ratos (1935).

Quero crer que sempre fui sua neta preferida, já que preferência é afinidade, empatia, algo que se sente, que não tem explicação. Comigo ele conseguia ser criança. Eu adorava as suas travessuras. Enquanto uns se entediavam com sua declamação de poemas em algum almoço de família, eu babava. E, quando tudo estava chato, nos refugiávamos, eu e ele, na cozinha e conversávamos com as empregadas.

Como ele gostava de plateia para narrar suas histórias, eu era a melhor companhia, e também testemunha e cúmplice de suas proezas de artesão. Lembro-me muito bem daqueles dedos longos restaurando livros antigos. “Mequinha, sabes que já fui encadernador?” Era esse meu apelido, entre nós apenas, pois nunca tive apelidos; aliás, odeio apelidos, mas desse eu gostava, e até hoje desconheço se tem algum significado.

Mais tarde soube que esses mesmos dedos esculpiram, lá nos anos 1930, no cárcere político, peças de um jogo de xadrez em cabos de vassoura, relíquia que segue guardada em um saquinho feito com um pedaço de uniforme listrado de presidiário e que consegui resgatar recentemente com uma prima. Dedos que me ensinaram a embaralhar cartas de uma forma diferente – ele apreciava jogar truco -, técnica que somente quando tive mãos de adulta pude realmente colocar em prática.

Nos fundos da casa da praia do Imbé tinha uma casinha amarelinha, uma espécie de oficina, batizada Vila Andrea… Eu amava isso, era uma homenagem! E demorou anos até eu descobrir Palladio – Andrea di Pietro della Gondola -, na faculdade de Arquitetura, e entender o sentido de villa. Na Vila Andrea havia tudo o que precisávamos para montar uma pandorga: ferramentas, varetas e papéis de seda coloridos. Sim, ele fazia e empinava pandorgas.

E as ironias? Hilárias para mim. “Inglês não interessa muito, português é uma língua obscena, aprenda francês.” Obedeci. Futricando sua mesa de trabalho, que na época se chamava birô (“bureau”, em francês), descobri as fotos! Muitas fotos de fachadas e vistas de Porto Alegre, lindas, registros de longas caminhadas. Será que nasceu daí minha paixão pela arquitetura… e pelas caminhadas?

Os Ratos traduz essa visão cinematográfica, a vida em movimento, ao descrever imageticamente a perambulação pela floresta urbana, barulhenta, labiríntica, de céu recortado, inferno e paraíso da civilização.

Meus 15 anos nos foram brindados com um poema: “Tens o silêncio no gesto, grande sinal de nobreza”. E logo veio a abertura política e a reedição de seus livros. O velho amigo então me outorgou o cargo de sua “base de massa”, uma convocação que, nessa época, eu ainda não sabia como honrar.

Quando defendi meu doutorado, escutei atentamente as observações da banca, mas recordando que ele contava que, em sua defesa, esbravejou para a plateia após comentários absurdos de um dos membros: “Ele não leu a tese!”. Esse era Dyonelio Machado!

Durante minha vida fui entendendo melhor sua faceta pública e também suas histórias pessoais, aquelas que realmente impulsionam o mundo e que desvendam o homem por trás do escritor, ou melhor, entranhado no escritor. As histórias do menino solitário do Quaraí, o início do namoro com minha avó, Adalgiza, companheira de toda a vida, que nunca perdia a elegância, nem mesmo quando tinha de ouvir: “Mequinha, que bom quando vens almoçar, só assim tem comida boa, porque, tu sabes, eu sou o bicho da casa”. E ele fazia cara de bicho. E ria.

A Adalgiza era pianista, lia, costurava, e preparava um doce de leite e uma massa inesquecíveis. Mas vivia mesmo era para ele. E, quando o Velho – assim ela carinhosamente o chamava – se foi, organizou as cartas, os manuscritos, tudo. Terminado o trabalho, deitou-se no sofá e se foi também.

Em minha família, as histórias vão sendo contadas aos poucos. E se misturam às lembranças que tenho do meu vô.

ANDREA SOLER MACHADO
Caderno DOC – Jornal Zero Hora  – 23 DE DEZEMBRO DE 2017
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