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16.12.2020 – HIGH NOON

 

Rever um clássico do faroeste, High Noon, é um prazer e tanto pelas qualidades artísticas do filme, além de nos levar a refletir sobre os americanos tão bem retratados nos bangue-bangues que encantaram adolescentes e jovens de todas as épocas.  

O xerife de uma cidadezinha de New Mexico se casa e renuncia ao seu cargo. A noiva é quaker, e os quakers, como se sabe, são contra armas e guerra. Os recém-casados devem sair da cidade para iniciar nova vida em outras paragens.

Eles se casam de manhã, o novo xerife só chegará no dia seguinte, e de repente surge a notícia de que um bandido antigo, preso pelo xerife, tinha saído da prisão e chegaria no trem do meio-dia em busca de vingança. 

Apesar dos pedidos de todos na cidade e sobretudo da noiva, o xerife se recusa a deixar a cidadezinha à mercê do bandido. Passa o filme inteiro tentando reunir homens para lutar ao seu lado. Ninguém quer saber de tiroteios, todos abandonam o xerife. Apenas dois se oferecem como voluntários – um velho meio bêbado com problema de visão e um menino de 16 anos, voluntários inaceitáveis. Na cena final, é o xerife sozinho lutando contra os quatro bandidos – quem o ajuda é a noiva quaker que mata um dos quatro. 

 

Quem faz o xerife é Gary Cooper. John Wayne recusou o papel, porque não concordava com a história do filme, que considerava antiamericana. Essa foi a polêmica do filme na época – o roteirista tinha sido comunista e ainda era de esquerda. Entendo a polêmica – as velhas instituições americanas, a família e a religião são criticadas por não apoiarem o xerife. No final do filme, antes de sair da cidadezinha com a noiva, o xerife atira sua estrela no chão e a espezinha, o que representava uma afronta para John Wayne.

À luz dessa polêmica da época – o filme é de 1952 – o exame do roteiro sem o impacto emocional das cenas revela certamente uma denúncia da sociedade americana e da figura do xerife que estabelece a lei e a ordem nos filmes de faroeste. O juiz sai da cidade, os negociantes que detêm algum poder preferem os desmandos dos bandidos.

Numa das cenas, dentro da igreja, o pastor e os fiéis discutem se devem formar um grupo para ajudar o xerife. Não adianta uma mulher dizer que com o bandido solto não seria mais possível caminhar pela cidadezinha em paz. Todos declaram que, apesar de ter sido o melhor xerife e estabelecido a ordem no lugar, ele deve ir embora sem tiroteios – todos já estavam acostumados a conviver com bandidos.

Até mesmo o antigo xerife, bem mais velho e amigo do protagonista, aconselha que ele não enfrente os bandidos. O seu desalento provém de uma falta de objetivo, isto é, para que colocar vidas em risco? Para que o empenho de todos os xerifes em estabelecer a ordem no faroeste? Ele responde para si mesmo – para nada. Um aparte. Cada povo tem o seu éthos, e as grandes dúvidas existenciais, o absurdo da vida, não batem com o modo de ser americano. Mesmo depois de terríveis golpes, eles estão sempre prontos a levantar a cabeça e enfrentar a realidade.

O roteiro parece ter sido escrito para acabar com a sociedade americana que se afirmava nos filmes de faroeste pela lei e ordem estabelecidas pelo xerife. Só que uma obra de arte, quando bem feita, adquire vida própria e pode vir a expressar algo bem diferente do que pretendia o artista que a criou.

A cena da estrela de xerife espezinhada, quase todos negando ajuda, tudo isso tem um impacto pequeno diante da recusa do protagonista a deixar a cidade desprotegida. Essa atitude é, na verdade, o filme inteiro, sua essência. Em oposição ao que pensava John Wayne, o filme é muito americano – retrata alguém que insiste em fazer o que lhe dita a consciência.

Se a intenção do roteirista era denunciar a corrupção da sociedade e valores americanos, o que ele acabou fazendo foi louvar o espírito americano que não abre mão de seus valores mais caros – individualidade e liberdade. Um hino de louvor ao xerife.

 

Em tempo, qualquer semelhança com a realidade contemporânea é mera coincidência.

 

 

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