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04.12.2017 – Gonçalo Mendes Ramires

 

Casa da Torre da Lagariça (Ilustre Casa de Ramires)

Das minhas leituras dos romances de Eça de Queirós, sempre guardei a impressão de um magnífico panorama da vida humana com todas as suas idiossincrasias. A riqueza dos detalhes das variadas figuras que perambulam pelas páginas do escritor português é de uma excelência ímpar. E também sempre me surpreendeu que os protagonistas se mostrem ralos, sem que seus dramas pessoais adquiram realmente vida. Os personagens principais dos romances de Eça de Queirós esmaecem na memória do leitor em contraste com um ou outro detalhe vívido de figuras secundárias.

A leitura de A Ilustre Casa de Ramires me reservou uma surpresa. O fidalgo da Torre, último representante da Casa de Ramires, não é dessas figuras que deixam poucas marcas no leitor. Gonçalo Mendes Ramires adquire contornos palpáveis no romance.

A narrativa é construída em dois planos – a história dos ancestrais guerreiros dos Ramires apresentada em tons um tanto debochados, e as desventuras do último representante da casa ilustre que empreende a redação da história de sua família.

Impossível deixar de rir, mesmo que à socapa, do grande antepassado que se chama Tructesindo. Não sei se esse nome é histórico ou inventado por Eça de Queirós, mas provoca o espírito de troça no leitor. Essa narrativa de grandes feitos heroicos descortina quadros épicos que Eça de Queirós pinta com maestria, sem deixar de sublinhá-los com a ironia que lhe é peculiar. No auge da peleja, chega a insinuar uma observação prosaica de que toda a fúria guerreira talvez não tenha razão de ser.

As desventuras do último dos Ramires traçam os contornos de um personagem com graves defeitos de caráter e um quê de covardia. Eça de Queirós delineia muito bem os desvãos da personalidade do fidalgo – o modo como ludibria sua consciência para fechar um negócio mais lucrativo apesar de ter empenhado sua palavra com outro parceiro, a manobra de restabelecer uma amizade do passado para conseguir apoio político, mesmo que isso possa ter consequências funestas para a situação moral de sua irmã, sua disposição a considerar o casamento com uma mulher que não lhe agrada só por ela ter fortuna. Uma personalidade que flerta com a canalhice e que, ainda por cima, se acovarda diante de quem o intimida.

O romance segue os desacertos do fidalgo e acaba delineando uma mudança no personagem. Num rompante inesperado, ele enfrenta o valentão que se comprazia em intimidá-lo, um sujeito de barba ruiva igual à do inimigo de seus antepassados. Com essa façanha, ele como que retoma seu lugar na Torre dos Ramires, e adquire uma estatura de verdadeiro fidalgo. Eça de Queirós chega a esboçar uma reflexão do personagem sobre a fragilidade e a falta de sentido da vida.

A transformação, entretanto, se mostra tão rala quanto as aventuras ao longo do romance. De acordo com outro personagem, Antônio Vilalobos, vulgo Titó, um homenzarrão desajeitado feito de material moral mais sólido, Gonçalo Mendes Ramires é leviano, mas seu amigo.

Tudo levaria a crer que mais uma vez o protagonista de um romance de Eça de Queirós prima por ser bastante superficial e irrelevante. Seu caráter é muito bem analisado pelo autor, mas seu destino parece tão sem graça quanto o de seus antepassados de nomes risíveis. Entretanto, não é o que acontece.

Gonçalo Ramires por Tomaz de Melo (Tom)

Gonçalo Mendes Ramires cativa o leitor. Ele é dado a ações ínfimas, coisas mínimas, sem importância, como o autor não cansa de repetir. Quando um escritor insiste em frisar que algo é coisa muito pequena, sem relevância, o leitor tem mais é que desconfiar. Pode muito bem ser que se trate do que há de mais precioso no livro.

O fato é que o fidalgo costuma ajudar as outras pessoas. Um trabalhador está com o pé ferido, o fidalgo lhe empresta a montaria e segue a pé ao seu lado. A espontaneidade da sua ação é real, mas ainda é possível escutar vozes céticas que questionem seu altruísmo. Essas vozes se calam, porém, numa outra cena comovente. O fidalgo é ameaçado por um lavrador que se ressentia de o fidalgo ter rompido o negócio apalavrado com ele. Como de costume, o fidalgo se acovarda e foge, mas não deixa de pedir a prisão do agressor no dia seguinte. Numa noite de chuva torrencial, a mulher do lavrador procura o fidalgo junto com os filhos pequenos para pedir que o marido seja libertado. O fidalgo lhe assegura que o homem estará livre no dia seguinte, e diz que ela deve voltar para casa.  Mas então percebe que o menino que a acompanha está doente com febre, e por isso não deixa que ela o leve de volta embaixo da chuva forte. Agasalha o menino, coloca-o na cama, acarinha a criança e, mais de uma vez durante a noite, vem ver como está o doente, se a febre amainou. É uma cena ínfima, coisa sem importância, mas que o leitor grava na memória. Muito mais impressionante que todas as façanhas do Tructesindo.

Gonçalo Mendes Ramires fascina por se revelar partícipe do destino do comum dos mortais. Como acontece na vida, há algo insondável na sua natureza que o torna vivo. Muitas vezes é o inferno interior que atrai os escritores que buscam conhecer o ser humano. O protagonista Gonçalo Mendes Ramires aponta que o céu interior também não deixa de ser insondável.

 

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