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04.01.2021 – Vírus Retóricos: Hate Speech, Teoria da Conspiração, Fake News

 

Em janeiro de 2015, um ataque terrorista islâmico matou 12 jornalistas do hebdomadário francês Charlie Hebdo, um periódico esquerdista com sátiras virulentas contra seus alvos preferidos – governos e ideologia de direita, com especial ênfase para a religião católica e o Papa. Em 2005, quando um cartum dinamarquês sobre Maomé atraiu a fúria islâmica contra seu autor, o Charlie Hebdo tinha se solidarizado com o cartunista e publicado o cartum. Por essa razão, os muçulmanos juraram matar os jornalistas franceses, ameaça cumprida em 2015.

O massacre abalou o mundo ocidental. Muitos chefes de estado participaram de marchas em Paris contra o terrorismo, e nas manifestações que se seguiram, os cartazes repetiam “Je suis Charlie”. Passadas algumas semanas, observei uma mudança nas discussões que lia entrecortadas nas agências de notícias. Em vez de refletirem sobre o terrorismo e as doze vidas ceifadas, a maioria parecia querer determinar os limites da crítica, se era realmente possível ofender alguém sem qualquer freio de moderação. E todos se perdiam nos detalhes dessa argumentação, esquecendo os doze jornalistas que tinham perdido a vida.

Lembrei as aulas de retórica e pensei – se alguém se descobre sem argumentos numa discussão, o truque mais fácil é mudar de assunto. Parece ter sido o que fizeram. Minha amiga americana ponderava que até o Papa tinha dito que não se podia ofender ninguém com tanta virulência. Tentando dirigir a discussão para a realidade, respondi que os cartunistas eram de esquerda, e o que já tinham publicado contra Jesus Cristo e a Virgem Maria era muito pior que seus cartuns sobre Maomé. E aí perguntei, qual foi o cristão que pegou um fuzil para matar os jornalistas que ofenderam Jesus Cristo e a Virgem Maria?

Essa reflexão já antiga me levou a examinar truques retóricos que vêm se repetindo para evitar qualquer debate sobre a realidade dos fatos. São formas de desviar a atenção da realidade e, para ser bem franca, constituem retórica para imbecis. O assustador é que esse discurso se infiltra na linguagem como um vírus, e os desavisados se deixam enredar nas teias armadas. Não se discute com imbecil – corta-se a linha da conversa e trata-se de encontrar novo fio da meada.

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Ao ver um vídeo com um trecho de um discurso de Hillary Clinton na campanha presidencial de 2016, senti um arrepio de pavor. Ela investia contra os que apoiavam o candidato Donald Trump, dizendo que eram racistas, sexistas, homofóbicos, nazistas, fascistas, a lista era interminável. Rotulou esses seres desprezíveis de deploráveis, afirmando que seria necessário colocá-los num cesto por serem irrecuperáveis. De olhos arregalados e o coração na mão, eu só troquei mentalmente “os apoiadores de Trump” pela palavra “judeus” e entendi quem estava falando. Seguindo a linha do genocida do III Reich, emprega-se hoje a retórica do ódio – Hate Speech.  Assim como Hitler desumanizou os judeus retirando-lhes o direito à própria vida, essa retórica demoniza qualquer adversário roubando-lhe o direito de se expressar dada a sua natureza demoníaca. De quebra, tal vírus retórico mascara o ódio sem freios de quem o emprega.

 

Em 2014, antes da eleição presidencial brasileira, o avião que transportava o candidato que tinha sido governador de Pernambuco caiu depois de decolar do aeroporto de Santos. Numa reunião de colegas do curso de alemão, comentávamos o acidente que abalou o país. Eu questionava o que poderia ter acontecido, achando escassas as explicações apresentadas. De repente, a colega ao meu lado me interrompeu ríspida afirmando que minhas dúvidas eram Teoria da Conspiração.  Atônita diante da dureza com que ela tinha falado, respondi que não tinha conhecimento de conspiração nenhuma, queria apenas saber por que a caixa preta do avião não estava funcionando na hora do acidente. Foi a primeira vez que me deparei com esse vírus retórico – alegar teoria da conspiração visa a acabar com qualquer discussão obrigando os desavisados a apresentar provas do que eles nem sabem o que é, enquanto seus oponentes escamoteiam a culpa em cartório. Por sinal, o acidente nunca foi explicado por causa da falha da caixa preta.

 

Não tenho certeza, mas acho que foi em 2016, antes da eleição americana, que comecei a encontrar na internet a expressão Fake News. Faço uma ligação entre o emprego desse vírus retórico e um escândalo que então estourou – era um caso de tráfico sexual de crianças, que ficou conhecido como Pizzagate por ter como centro de operações uma pizzaria. Um escândalo ligado a pessoas da campanha de Hillary Clinton. Pode ser que me engane, pois não navego na internet com destreza e grande frequência, mas de uma coisa tenho certeza: o efeito dessa expressão Fake News é altamente prejudicial. Esse vírus retórico consegue minar a credibilidade de qualquer news. Com isso, o jornalismo tem seus dias contados, e o único resultado possível é a instituição do Ministério da Verdade do romance de George Orwell.

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A melhor maneira de lutar contra um vírus é impedir que se introduza no organismo sadio. Esses três vírus retóricos mencionados já se tornaram lugar-comum nas discussões atuais, por isso cabe procurar o remédio adequado para neutralizá-los. Até agora o que parece mais eficaz é não se deixar enredar por eles, conduzir a discussão para fora do alcance de suas garras. E vigiar para que aqueles que os empregam saibam que não estão lidando com idiotas.  

 

 

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