de revoada » Rosaura Eichenberg

04.02.2020 – G. K. Chesterton – Arte

 

Em seu livro The Everlasting Man,  o escritor inglês do início do século XX, G. K. Chesterton, faz uma reflexão sobre os seres humanos e demonstra que o homem não é como os outros animais. Ao considerar as eras da pré-história, Chesterton aponta que pouco sabemos dos homens pré-históricos – deles temos apenas o testemunho dos desenhos nas cavernas. Um ofício que pertence unicamente ao ser humano – inexistente nos outros animais, e igualmente ausente nas máquinas, capazes tão somente de ampliá-lo, refiná-lo, aperfeiçoá-lo, jamais criá-lo.

E com isso Chesterton cunha uma frase memorável.

     A Arte é a assinatura do homem.

 

07.01.2020 – Inteligência artificial

 

O olho humano é uma das tantas maravilhas da natureza, mas ele tem seus limites. Na sua busca de conhecimento, os humanos inventaram mecanismos para superar essas limitações – o telescópio permitiu a visão de objetos muito distantes, o microscópio tornou possível a inspeção de fenômenos extremamente pequenos. E com o avanço da ciência e tecnologia modernas, os auxílios para o olho humano se multiplicaram exponencialmente.

Hoje estão muito adiantados os estudos para o desenvolvimento da inteligência artificial. Entendo a inteligência artificial como um mecanismo que está sendo criado para superar as limitações da inteligência humana. Em vários aspectos, no estágio em que hoje se encontra, a inteligência artificial é muito superior à humana. Por exemplo, li que os estudos de energia nuclear obtida por meio da fusão de átomos estão sendo realizados com o auxílio imprescindível da inteligência artificial. Outro exemplo é o ramo da robótica – por meio de robôs, os seres humanos estão ampliando sobremaneira sua possibilidade de atuação na exploração do desconhecido.

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É importante, entretanto, não desvirtuar o desenvolvimento e o emprego desse valioso instrumento moderno.  Não devemos transformar a inteligência artificial num fetiche. Isto é, a inteligência artificial não tem por objetivo imitar a mente humana ou substituí-la. Achar que ela pode tomar o lugar da mente humana é alimentar uma mentalidade de super-heróis dos gibis. Por favor, menos.

Numa aula de cosmologia, o professor colocou no quadro-negro as proporções de nosso universo: num canto, um quadradinho representava todo o universo que, de algum modo, podemos ver ou conceber; do mesmo canto partia um quadrado maior que chegava ao centro do quadro-negro, indicando a matéria escura ainda desconhecida por nós; o resto do quadro-negro era ocupado pela energia escura, igualmente desconhecida. Nós, humanos, somos um nada invisível num pálido ponto azul (a Terra nas palavras de Carl Sagan) perdido naquele quadradinho diminuto no canto do quadro-negro. Uma lição de humildade.

Ainda assim, o quadradinho encolhido no alto do quadro-negro é o nosso universo, aquele que nos deslumbra pela imensidão e nos intimida pelo desconhecido. Entendo que cada um de nós possui na cabeça universo semelhante. A mente humana equivale ao universo na medida em que contém igual imensidão e igual desconhecido. Assim como os estudos sobre o universo, as pesquisas sobre a mente humana avançam com eficiência e celeridade, mas cumpre lembrar que ainda se encontram em fases preliminares.

Só que não é apenas a dificuldade dos estudos que impede a cópia da mente humana. Que esses estudos avancem cada vez mais e tragam auxílios de suma importância para o conhecimento humano. Mas é essencial desfazer o fetiche, a quimera. A mente humana não pode ser copiada, clonada, imitada, porque ela tem características irredutíveis a essa tentativa. Como a vida, a mente humana é imperfeita. Impossível copiar a imperfeição.

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04.01.2020 – Anna Magdalena Bach

 

Em 1988, a Editora Veredas publicou a tradução brasileira de uma verdadeira joia, Pequena Crônica de Anna Magdalena Bach. Esse livro, publicado anonimamente em 1925, é uma novela da escritora inglesa Esther Meynell. Uma obra de ficção, portanto, mas por ser fundamentada em documentos e estudos sobre Bach, lança muita luz sobre a vida e o trabalho do grande músico.

Anna Magdalena foi a segunda esposa de Bach, com quem teve treze filhos e conviveu até a morte do compositor. Ela era 15 anos mais nova que o marido, cantava e acompanhou de perto seu trabalho musical. No livro, dedica muitas páginas ao ensino de música que presenciou na sua casa, pois essa era uma das funções dos cargos ocupados por Bach.

Recebeu como presente do marido um pequeno livro com a cópia das duas grandes partitas em lá menor e mi menor. Seguiam-se várias peças, arranjos corais e vocais, contribuições de compositores da época, sem nenhuma ordem específica e frequentemente entremeados com outras composições do próprio Bach.

Suas memórias romanceadas são uma aproximação singela e muito interessante ao gênio da música.

Notenbüchlein für Anna Magdalena Bach

Minueto em sol maior  –  Christian Petzold

 

03.12.2019 – O alerta de Ricardo III

 

William Shakespeare criou Ricardo III ainda antes de 1600.

A peça histórica se debruça sobre a ascensão de Ricardo III ao poder. Uma consulta à Enciclopédia Britânica nos informa que o reinado de Ricardo III foi curto e que, por ser muito bom administrador e ter diminuído os impostos, esse rei foi bastante popular. Entre o período de vida de Ricardo III e o de Shakespeare estende-se um longo século, e foi com as lendas criadas em torno do rei já remoto que o dramaturgo inglês moldou o corcunda maligno que marcou para sempre a imaginação da humanidade. Mesmo pessoas que nada sabem de Shakespeare e suas obras assentem com um olhar de reconhecimento, se alguém lhes fala da cena magistral do corcunda correndo pelo campo de batalha a gritar ‘Meu reino por um cavalo!’

A peça abre com um longo monólogo do protagonista corcunda. Obedecendo as regras do teatro elizabetano, ele tem de fornecer ao público as coordenadas principais da ação que se desenrolará no palco. Assim, ele começa dizendo que as guerras acabaram na Inglaterra e que os York venceram.

“Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York.”

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E passa a descrever os tempos de festas e folguedos que substituíram as agruras das batalhas. Mas ele, corcunda, malformado a ponto de os cães ladrarem à sua passagem, ele não tem lugar nesses dias felizes. E por isso, como não pode amar e ser amado, decidiu ser um vilão.

“…since I cannot prove a lover,
To entertain these fair well-spoken days,
I am determined to prove a villain.”

Dessa forma, a plateia toma conhecimento de que ele tem uma agenda de destruição por ser um vilão. Seus companheiros de palco de nada sabem, não desconfiam de sua pessoa nem de seus planos, imersos em ignorância, mas o público está ciente do mal a ser cometido e por quem. É com essa estrutura delineada na cena inicial que Shakespeare constrói sua peça.

Ao longo do desenrolar da trama, as intrigas e matanças vão obedecer a agenda destrutiva do autodeclarado vilão, e o grande espetáculo é o modo insinuante com que ele consegue distorcer a visão de todos, impedindo que sejam desmascarados seus engodos. Ele é certamente o grande protagonista, todos os outros personagens esvaecem à sua sombra. Sua inteligência e retórica brilham ao enganar todo mundo, seja porque sua lábia ludibria os incautos, seja porque sabe fazer uso das fraquezas alheias.

Dentre as várias cenas de engambelação, salienta-se a demagogia de quando os cidadãos se dirigem ao mosteiro onde o monstro corcunda se recolheu contrito a ler escrituras sagradas, para insistirem e acabarem com sua relutância em aceitar a coroa e o reino. Mas nem essa armação consegue superar a repulsa de outra cena.

Nos corredores do palácio, passa o cortejo fúnebre do rei Henrique VI, derrubado pelos York. Ao seu lado, uma dama da corte, Lady Anne, viúva do filho desse rei, presta as últimas homenagens ao morto. O cortejo se interrompe quando o corcunda entra em cena e passa a falar com a dama. Por meio de malabarismos retóricos, consegue convencê-la a se casar com ele. E no pequeno monólogo após a cena, ele tripudia em cima da dama: como é possível ter vencido sua resistência quando ele é que matou o rei no caixão e seu filho que era o marido da dama? A malignidade do monstro corcunda é esse seu total desprezo pelos outros seres humanos, meros joguetes nas suas mãos.

A peça foi encenada pela primeira vez antes de 1600. Informa com clareza cristalina que só se estabelece uma tirania havendo duas condições:

– Um ser deformado, um corcunda, alguém que quer o poder pelo poder para destruir

–  Um bando de palermas, patetas, imbecis, estúpidos, ignorantes, retardados mentais, gente incapaz de pensar

Não é extraordinário que seu alerta esteja mais atual que nunca neste nosso século XXI? Os corcundas proliferam no globo, com os olhos apertados dos chineses, os traços eslavos dos russos, os turbantes e túnicas dos povos do Oriente Médio e do islã, as faces ocultas dos globalistas que vazam moedas por todos os poros.

Para que seus planos de impérios globais, necessariamente totalitários, tenham êxito, é preciso criar a segunda condição prescrita por Shakespeare. Há que transformar a humanidade numa manada de imbecis. Assim inventaram mecanismos eficazes para disseminar a parvoíce pelo mundo, ou não é esse o objetivo mais evidente do pensamento politicamente correto? Não é preciso ter uma avaria nos neurônios para cair na cilada da argumentação falha e da retórica bandida das mudanças climáticas? Apenas quem desistiu do potencial de pensar embarca nos engodos das políticas identitárias, desconsidera a inversão do sentido das palavras, julga normal o total desprezo pela realidade dos fatos.

Shakespeare gosta de inserir no desenrolar da trama personagens populares que tecem comentários sobre a ação representada. Assim um escriba que acabou de redigir um mandado de prisão e execução de um dos inimigos do corcunda já rei observa:

Here’s a good world the while! Why, who’s so gross,
That seeth not this palpable device?
Yet who’s so blind, but says he sees it not?
Bad is the world, and all will come to nought,
When such bad dealing must be seen in thought.

Quando se observa o mundo imbecilizado que está sendo estabelecido pelos corcundas modernos, fica-se em dúvida – será o mundo dos yahoos e huyhnhnms visitado por Gulliver ou o mundo insano de Alice no País das Maravilhas?

Resta-nos ler e reler Ricardo III. A peça de Shakespeare deveria ser encenada pelo mundo afora hoje em dia, para que a humanidade escutasse com atenção um alerta de tantos séculos atrás.

 

08.10.2019 – O Pânico de Fritz Lang

 

Em 1990, o mundo inteiro comemorou o centenário de nascimento de Fritz Lang, grande cineasta alemão do início do século XX. Eu cursava então a última série no ICBA – Instituto Cultural Brasil Alemanha – e me preparava para as provas do Grosses Sprach Diplom. Em homenagem ao grande artista alemão, um dos livros a serem estudados era uma biografia de Fritz Lang. E foi assim que li com espanto e admiração a história de sua saída da Alemanha nazista, quando Hitler assumiu o poder em 1933.

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Em 1933, Fritz Lang já era um cineasta famoso com uma lista nada desprezível de obras-primas realizadas. Desse período chamado sua fase de expressionismo alemão, constam, entre outros, Dr. Mabuse – duas partes: O Jogador. Imagem dos Tempos e Inferno. Os Homens desses Tempos – de 1922, Os Nibelungos – A Morte de Siegfried e a Vingança de Cremilda de 1924, Metrópolis de 1927, M, o Vampiro de Düsseldorf de 1931, seu primeiro filme sonoro, e O Testamento do Dr. Mabuse de 1933. Além dessa bagagem considerável de realizações, Fritz Lang era em 1933 um artista famoso e muito rico. Na época, um dos sinais de grande riqueza era o carro que possuía.

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Com os nazistas no poder, o filme O Testamento do Dr. Mabuse acabou sendo proibido. Um dos homens fortes na hierarquia do governo nazista, o Ministro da Propaganda Joseph Goebbels, ensaiava uma aproximação com a elite cultural da Alemanha. Numa entrevista concedida a Erwin Leiser em 1968 (link do vídeo abaixo), Fritz Lang fala que Goebbels até o convidou, a ele e à mulher, para um jantar na sua casa, ocasião em que foi muito cordial e educado sem mencionar o filme do Dr. Mabuse. Essa película foi montada em fevereiro de 1933, e em 28 de março Goebbels fez um discurso-programa aos profissionais do cinema no Hotel Kaiserhof, seu quartel-general, citando filmes-modelo como Os Nibelungos, com direito à presença de Fritz Lang ao seu lado na mesa. Em 29 de março, O Testamento do Dr. Mabuse é proibido. E em 30 de março, Fritz Lang é intimado a se dirigir ao gabinete de Goebbels, que desejava falar com ele.

Hitler and Goebbels na UFA em 1935

 No vídeo, é possível acompanhar pela descrição de Lang o que foi esse encontro no final da manhã de 30 de março. Ao esboçar a arquitetura opressiva dos vários corredores que teve de percorrer, com os vigias a pedir documentos e dar ordens ríspidas quanto à direção a seguir, ele nos faz sentir que estamos em mais um dos filmes de Fritz Lang, devidamente amedrontados na enorme sala com a escrivaninha de Goebbels bem ao fundo. A conversa se desenrola de modo bastante pacífico, mas Lang não para de mencionar que o suor escorria pelas suas costas. Goebbels diz que o Führer admirava a obra de Fritz Lang, especialmente Metrópolis, e que desejava a cooperação do cineasta, que ele traçasse as linhas de toda a indústria cinematográfica da Alemanha nazista. Lang se inclina agradecendo a honra que lhe é concedida, mas não deixa de olhar pela janela o grande relógio com os ponteiros marcando o tempo que voa. Goebbels ainda se refere ao filme censurado do Dr. Mabuse, expressando seu desejo de que o final fosse diferente, com a fúria do povo matando o doutor diabólico. Completamente molhado de suor, Lang consegue por fim sair do gabinete de Goebbels e corre a ver se os bancos ainda estão abertos. Em vão, não consegue tirar dinheiro nenhum, vai para casa, arruma a mala, e à noite toma o trem que o leva para longe da Alemanha e dos nazistas.

Cartaz Dr Mabuse e cenário de Metrópolis

 

Quando li essa passagem na biografia de Lang, não pude deixar de me espantar com o pânico que parecia ter se apossado do cineasta. Afinal, pensei, ele não poderia ter esperado para fugir no dia seguinte? Bem, a resposta é não, se o pânico era avassalador. E o homem que criara a série de filmes sobre o Dr, Mabuse devia saber muito bem o que estava para acontecer na Alemanha. Pois, nas suas palavras, tinha colocado na boca de Mabuse a propaganda nazista, essencialmente sua tendência a destruir a confiança do povo no governo eleito para construir sobre esses destroços o império do crime. Essa frase não soa familiar no Brasil de hoje às voltas com um STF e Congresso corrompidos?

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Muitos já contestaram essa história relatada por Fritz Lang em várias ocasiões. Alegam que seu passaporte só acusa que entrou em Paris em 28 de junho, fez uma viagem de avião a Londres, passou por Berlim em julho e chegou finalmente a Paris em 21 de julho. Ora, Lang afirma ter tomado um trem para sair de Berlim em 30 de março de 1933. Embora tenha passado um ano na França antes de se exilar nos Estados Unidos, isso não quer dizer que tenha tomado o trem para a França naquele 30 de março. Áustria, Suíça eram outros possíveis destinos. Divorciou-se de Thea von Harbou, escritora e roteirista de muitos de seus filmes, em 20 de abril, mas isso confirmaria a presença de Lang na Alemanha nessa data? E um seu colega de ofício, Emil Hasler, que se admirou por ver Lang sentado perto de Goebbels no encontro com os cineastas em 28 de março, afirma que depois desse dia Lang simplesmente desapareceu. Embora Fritz Lang tenha certamente dramatizado sua fuga da Alemanha nazista, o seu relato parece mais fiel aos fatos que os carimbos no seu passaporte.

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Ao longo de 1990, tivemos a oportunidade de ver vários filmes de Fritz Lang como atividade extra nas aulas do ICBA. Filmes realizados na Alemanha e nos Estados Unidos. Dentre todos, o que sempre me fascinou sobremaneira é M, o Vampiro de Düsseldorf. Primeiro filme sonoro de Fritz Lang, roteiro elaborado com Thea von Harbou, tendo o extraordinário ator austríaco Peter Lorre no papel principal, a maestria de Lang constrói a obra-prima desde a primeira cena. E quem não guarda na memória com um calafrio a melodia de Grieg assobiada pelo assassino antes de cometer seus crimes?

 

O título do filme enfrentou turbulências desde o início da filmagem. Para a narrativa de um assassino serial de meninas que passa a ser perseguido não só pela polícia, mas também pela rede de criminosos da cidade porque ele está causando prejuízo aos negócios ilícitos, o primeiro título escolhido foi M, Mörder unter unsM, O Assassino entre nós. O filme é de 1931 – o partido nazista ainda não chegara ao poder, mas suas ideias sombrias já permeavam todo o ambiente cultural de Berlim. Assim é que Fritz Lang começou a ter dificuldades em alugar estúdios para realizar a filmagem e acabou mudando o título que passou a ser M, Eine Stadt Sucht Einen MörderM, Uma Cidade Procura um Assassino. Quando chegou ao Brasil, o título do filme se transformou em M, O Vampiro de Düsseldorf.  Fritz Lang e Thea von Harbou construíram o roteiro sobre as notícias que saíam nos jornais a respeito de Peter Kürten, o monstro de Düsseldorf. Ao reproduzir o título do filme em português, o tradutor brasileiro foi criativo ao usar a palavra Vampiro, e consciencioso ao dar o nome da cidade que tinha sido palco dos terríveis crimes. Mas o título brasileiro produziu um curto-circuito em muitos alemães, como, por exemplo, no diretor do Goethe Institut à época em que estudamos Fritz Lang. Ainda me lembro de sua cara perplexa, sem conseguir encontrar uma explicação para que se falasse em Düsseldorf, quando o filme mostrava para qualquer alemão que se preze a cidade de Berlim.

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Acho que em nossos tempos difíceis, mais uma vez assombrados pela ameaça do totalitarismo, é muito conveniente rever os filmes de Fritz Lang. Não só pelo refinamento de sua arte – muitas vezes encontrei semelhanças entre os filmes de Fritz Lang e Alfred Hitchcock. Vale também sua descrição do ambiente sufocado de uma sociedade totalitária, capaz de gerar o pânico que talvez tenha experimentado ao ver Dr. Mabuse se materializar na Alemanha nazista.

 

2.09.2019 – Dies Irae

 

Difícil muitas vezes compreender que não é sonho este país em que os bandidos posam de congressistas e membros da Suprema Corte para interrogar o juiz que ousou desmantelar parte do grande sistema de corrupção.  Afinal um estrangeiro com um histórico pouco confiável resolveu publicar conversas roubadas entre o juiz, agora Ministro da Justiça, e os procuradores, e ninguém achou por bem tomar a única medida sensata – expulsar esse pseudojornalista para bem longe, quem sabe para Marte. Não, os jornais e os noticiários antes cuidavam de registrar todas as informações suspeitas na procura de alguma falha mínima que pudesse invalidar o trabalho duro, corajoso e competente do juiz e dos procuradores. Enquanto essa guerra de foice se desenrolava no cenário hostil da principal cidade do país, ficava-se sabendo que o ex-presidente, ora presidiário, mais a ex-presidente fantoche que o sucedeu, tinham roubado do país meio trilhão para financiar o projeto comunista de poder de seu partido. E a lembrança da presidente que não conseguia falar, nem pensar tornava o sonho ou realidade ainda mais nublado.

Se esse capitão for eleito, vai começar a barbárie entre nós. Era o que se escutava, e complicado entender a frase depois que o capitão foi esfaqueado e quase morto.  Que barbárie ainda vai começar quando o país tem mais de 70.000 homicídios por ano? Os vampiros de capa preta que insistem em soltar bandidos presos, em garantir que todos possam roubar e matar em paz, em rasgar a Constituição do país dia sim, outro também – não são os que fazem de tudo para que a barbárie vingue? É a terra do carnaval, dizem – e por isso tem que ser uma terra em que não se pode viver em paz? Um bandido a cada esquina, um perigo sempre à espreita nas cidades e nos campos.  

Novas leis são aprovadas na calada da noite, penalizando os agentes da lei e cuidando para que os bandidos não sejam insultados. Muito mais importante protegê-los do que se preocupar com os pobres coitados que perdem a vida e seus bens, materiais e morais, numa luta desigual com criminosos que ostentam armas de último tipo recém-chegadas do tráfico nas fronteiras. Há muitos anos luta este país por uma vida decente. Foi com grande esforço que conseguiu retirar a presidente espantalho e prender seu comparsa de crimes, mas não dá para negar que apenas começou a trilhar o caminho difícil. Emprego decente para o sustento, menos violência nas cidades, crianças e jovens estudando pra valer nas escolas, uma vida que não seja de faz de conta. Ainda tudo muito enevoado, pairando na capital congressistas imundos e os vampiros da capa preta a berrar que devem ser respeitadas as instituições carcomidas e aos pedaços em que insistem em se apoiar cambaleantes.

 

Todo esse mundo insano ainda poderia ser enfrentado como eventos num país desconhecido de seus próprios habitantes, uma terra que se atribui o epíteto “país do futuro”. Mas o sonho ou realidade também assombra o outro lado das fronteiras e o remoto além-mar.

Atentados terroristas estrondam aqui e ali, mas os responsáveis pelos crimes, ou em nome de quem eles são cometidos, recebem loas por serem os oprimidos do mundo, os que sofrem insultos e afrontas de todo tipo, os que devem ser protegidos. O algoz é incensado, a vítima aniquilada. Um grupo ativista se denomina Antifa – antifascistas, e seus protestos violentos revelam que não passam de uma moderna versão dos camisas pretas de Mussolini. Um menino é morto a pauladas pela mãe porque se recusou a vestir roupas de menina. Em nome de uma religião que se proclama pacífica, doze cartunistas são assassinados, e até o Papa justifica os homicídios. Nas universidades, os estudantes não querem estudar Shakespeare porque o grande dramaturgo os ofende. Um juiz a ser confirmado para a Suprema Corte é acusado de ter atacado sexualmente uma colega da escola há mais de 30 anos – nenhuma prova, nenhuma testemunha, apenas o depoimento da moça que o acusa, algo a ser acreditado porque ela é mulher. Os dedos acusadores apontam para os racistas, os sexistas, os nazistas, os fascistas, mas o ódio de todos os “istas” estampa a cara de quem mantém os dedos em riste. Rostos igualmente deformados pela ira e pelo ódio nas mulheres que lutam pelo direito de matar seus bebês. A insanidade parece ser a regra, e o sonho é tão amedrontador que surge o pensamento mais plausível – o mundo está em guerra. A terceira guerra mundial tão temida e tão negada, ao que parece, já começou.

 

 

O pesadelo do mundo virado de cabeça para baixo acaba por confirmar que o mal tomou conta da Terra. “O diabo na rua no meio do redemoinho…” O nada chacoalha o planeta, e não há como negar que a clara intenção é dar cabo da humanidade.

Em primeiro lugar, o ataque da linha de frente mira a inteligência humana. Já no século XVI, Shakespeare ensinava didaticamente que duas condições se faziam necessárias para haver tirania – um ser deformado que busca o poder pelo poder, e um imenso bando de palermas, patetas, imbecis, estúpidos, retardados mentais, parvos, tolos e por aí vai. Assim é que os senhores poderosos fazem de tudo para emburrecer seus escravos.  Um de seus instrumentos é um enorme arsenal para destruir o sentido das palavras. Inventaram um “pensamento politicamente correto” que prende e elimina muitos vocábulos, tratando de deturpar os que escapam de seu controle. E cuidaram para que o sentido das palavras muitas vezes se invertesse, obrigando o belo a virar feio, o bem a se tornar o mal, o bandido a desempenhar o papel de mocinho.  O ataque é tão insistente e tenaz que a grande maioria nem vai perceber quando acordarem metamorfoseados em insetos. Outro ataque fulminante à inteligência se insinua nos meios de comunicação que a nova tecnologia acelera com os recursos digitais. De livros, artigos, cartas, textos, parágrafos longos, a comunicação passou para os Whatsapps, os Twitters, os Instagrams, os Facebooks, cada vez mais instantânea e menos compreensível. A linguagem humana agoniza aos olhos de todos, e com sua morte definha a literatura, a cultura, a religião, a ciência, a capacidade de pensar. Os próprios cientistas se deixam enredar em campanhas de retórica engana-trouxa como a das mudanças climáticas, afirmando sem pejo que o homem pode controlar o clima da Terra. Se a ação humana está destruindo o clima, não é curto o passo para declarar que está nas mãos dos homens controlá-lo?  Com isso contribuem para a falácia da ecologia em nível global, quando só é possível cuidar do meio ambiente em nível local.  É uma falácia de gibi, diga-se de passagem, porque transforma os seres humanos em Super-homens, Capitães Marvel, Batmans, e inflados Patetas. Muito triste, o ataque à inteligência humana passou a ser uma descomunal Marcha da Estupidez. 

Em segundo lugar, ataca-se a sexualidade humana. Isso faz sentido, quando a intenção é acabar com a humanidade, porque sexo é um impulso vital dos humanos. Criaram para esse fim um apanhado de sandices chamado “ideologia de gênero” – a base desse disparate é a afirmação de que gênero é um construto social. Sexo é em primeiro lugar uma realidade biológica, e a identidade sexual uma construção de vida inteira predominantemente individual. O social desempenha um papel bastante superficial nesse processo, como se fosse um verniz. Apoiados nas condenações sociais de algumas das práticas sexuais, os que se querem senhores do mundo trataram de conseguir meios de impor socialmente identidades sexuais. A maneira mais canalha utilizada foi tentar anular a realidade dos sexos biológicos. Ninguém mais seria homem ou mulher, apenas um X. Eliminada a realidade, a identidade sexual podia ser trocada quantas vezes se quisesse, isto é, sexo se transformou numa quimera. Criou-se uma esquisitice chamada queer, alguém que não se submete à divisão binária masculino/feminino, podendo atuar como homem ou como mulher, ou como nenhum dos dois. Em suma, a sexualidade humana desaparece, todo mundo com direito a ter todas as identidades sexuais, ou melhor, obrigado a não ter nenhuma. A vilania da ideologia de gênero é a sociedade se achar no direito de determinar a sexualidade ou não sexualidade de cada indivíduo, e seu caráter diabólico vem à tona quando procuram impor essa ideologia às crianças e adolescentes, isto é, a seres humanos em formação que vivem a fase talvez mais conturbada da procura individual de sua identidade sexual. Nesse caso, o que se comete é na verdade um crime. Como atestam histórias terríveis de meninos que morreram por se recusarem a cumprir o que manda a ideologia de gênero. E outro intuito nefasto dessa sandice é a destruição da família, pois as figuras de pai, mãe e filhos não são quimeras, estando atadas à realidade do sexo masculino e feminino.

Em terceiro lugar, investe-se pura e simplesmente contra a vida humana. Os senhores do mundo consideram necessário reduzir a população do planeta, e para isso têm vários recursos à mão como guerras, epidemia de drogas, falta de recursos sanitários, promoção da prática do aborto. Hitler mostrou à humanidade que o total desrespeito à vida desemboca no holocausto. Infelizmente esse desrespeito está em vigor entre nós. A China impôs por muito tempo a norma do filho único, e um dos dispositivos da agenda 2030 da ONU é a promoção da prática do aborto. Outro dispositivo, tão nefasto quanto, é a liberalização das drogas. No Brasil, o povo condena e abomina o aborto, por isso o Congresso, de olho nos votos futuros, não quer saber de legislar sobre a questão – quem está tentando impor a famigerada agenda da ONU goela abaixo do povo é o Supremo Covil dos Vampiros. Muitos alegam que a posição do povo em relação ao aborto se deve ao fato de ser religioso, mas sua forte pulsão de vida parece ser a causa mais provável.  Escreveu um autor já clássico: “O sertanejo é antes de tudo um forte”, aludindo talvez a esse impulso vital dos brasileiros. Juan Rulfo, um grande escritor mexicano, referiu-se à mesma atitude numa conferência em que falava sobre o México e seu povo. Disse ele que o México é quase um deserto, terra árida e agreste, hostil à vida. “Mas,” continuou ele, “nós mexicanos somos teimosos, insistimos em fazer filhos.” Sentimento tenazmente combatido por organizações como a americana Planned Parenthood, que promove o aborto com práticas que reportam aos experimentos genéticos de Hitler. Em nome de um suposto progresso da medicina, realizam-se também experiências estranhas que criam seres híbridos, meio ratos, meio humanos. Atrevem-se cada vez mais a desrespeitar a vida sem temer o castigo que há de vir, porque todos no fundo sabem que nem homem nem mulher tem a capacidade de decidir sobre vida e morte.

 

 

Não é agradável o mundo em que hoje vivemos. Somos talvez prósperos, mas o mal se insinua entre todos os disparates que grassam como nas gravuras de Goya. Em dias mais sombrios, a impressão é que nova Idade das Trevas tomou conta do planeta. Quando a estupidez galopante desanima por demais, bate por vezes o desespero. Em Macbeth, Shakespeare encenou um inferno que encerra a mesma máxima de Dante Alighieri – “Deixai toda esperança, vós que entrais”. Àqueles a quem foi concedida a graça da fé ainda é possível seguir confiando na vida em meio à escuridão. Lemos em João Guimarães Rosa – “Deus é paciência”.  Mas no epicentro do redemoinho parece mais do que apropriado escutar Dies Irae de Wolfgang Amadeus Mozart.

 

21.06.2019 – O Brasil inteiro estudando…

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Ocorreram recentemente manifestações no Brasil contra o corte de verbas para a educação. Um grande número de pessoas invadiu as ruas pedindo maior empenho do governo nessa tarefa essencial em qualquer país. Vi algumas fotos das manifestações, e gostaria de comentar o cartaz que aparecia em primeiro plano numa delas. Dizia: “Educação não tem preço e sim investimento pois só educação nos TRAZERÁ crescimento!!”

É um atestado da grande tragédia brasileira – a educação está destruída em nosso país. E não se trata de uma questão de recursos, de financiamento, de subsídios. O Brasil é um dos países que mais investem em educação, mas ostenta no cenário mundial, se não os piores índices de educação, ao menos uma posição garbosa entre os três últimos colocados. Nosso sistema de ensino simplesmente saiu dos trilhos e não cumpre mais sua função. É preciso ser muito ingênuo para achar que o cartaz analfabeto seria apenas o erro de um aluno que não estudou bastante. Revela infelizmente a derrocada de nosso sistema de educação.

Erros em educação são especialmente danosos, porque não são corrigidos da noite para o dia. Eles se alastram por anos, às vezes décadas, e levam anos e provavelmente décadas para serem revertidos. Significam em geral gerações e gerações perdidas, as deficiências crescendo como bolas de neve ladeira abaixo.

Antes da ditadura militar, a escola pública constituía referência no ensino brasileiro. O patinho feio era então a escola particular. Vale pesquisar o que inverteu essa realidade – a escola pública se tornou lixo, e a escola particular, um lixo apenas mais aceitável a um custo exorbitante.

Não sei o que provocou essa perversão na educação brasileira, mas lembro que nos anos 70 o ensino secundário passou a ser incentivado como uma forma de se preparar para o exame vestibular da universidade. Proliferaram os cursinhos preparatórios, e o que se aprendia na escola visava apenas a melhorar o desempenho dos alunos nas provas de admissão que passaram a abranger múltiplas disciplinas. Um efeito colateral dessa tendência foi a adoção de testes de múltipla escolha, o que levou várias gerações de alunos a responder perguntas apenas marcando um X, isto é, sem elaborar frases. A redação tornou-se inexistente nos exercícios escolares, e isso certamente teve um impacto negativo no desenvolvimento intelectual. Tanto assim que os educadores reconheceram o erro e recuaram procurando voltar à prática antiga, mas o leite já estava derramado.

Ainda no início dos anos 70, tive contato com muitos colegas que seguiram a carreira docente, e observei uma atitude que à época considerei preocupante. Todos reclamavam do baixo rendimento dos alunos, muito ignorantes na sua opinião. A profissão de professor não era valorizada naqueles tempos, se é que algum dia o foi, e a posição de meus colegas parecia uma resposta ao desrespeito pela imagem do mestre. Reagiam atacando os alunos, exasperados por ter de aguentar seu escasso conhecimento e comportamento errático. Havia algo estranho, pois é natural que os alunos sejam ignorantes, eles estão na escola para aprender. Meus colegas pareciam querer lecionar a alunos mais adiantados, passar de professores do ensino médio para professores da graduação e até pós-graduação na universidade.

Mais tarde vim a compreender essa tendência no contexto de uma mudança então em andamento no ensino brasileiro. Por um efeito em cascata, propagou-se um erro muito danoso pelos vários níveis do aprendizado. Os pequenos do curso primário não aprendiam o que deveriam aprender, por isso tinham de repetir o aprendizado no curso secundário que ficava comprometido e incompleto.  Ao ingressarem nas universidades, os alunos não dominavam o que deveriam ter aprendido no secundário, por isso ao menos os primeiros anos do curso superior eram perdidos com a revisão de conteúdos que não tinham sido estudados nos anos anteriores. O curso universitário tornava-se assim igualmente capenga, e procurava-se compensar grande parte de sua incompletude com os estudos na pós-graduação. De deficiência em deficiência, os anos de formação dos brasileiros viraram uma colcha de retalhos com mais buracos que remendos.

Nos anos 80, acompanhei de longe mudanças estranhas no ensino da língua portuguesa. Já nos anos 60, eu tinha lamentado a retirada do latim dos currículos do ensino secundário, porque sempre tive como fundamental a infraestrutura linguística que o estudo do latim proporciona. Mas depois observei certas características no mínimo bizarras do ensino das línguas. Por exemplo, ensinavam-se no secundário as funções da linguagem definidas pelo linguista russo Roman Jakobson. Ora, não seria essa análise mais pertinente para um grau avançado dos estudos linguísticos? Teria razão de ser para quem ainda aprendia a gramática da sua língua? Aliás, a nomenclatura gramatical deve ter sofrido muitas alterações ao longo dos anos, pois para minha surpresa, numa aula de mandarim, descobri que minhas colegas não sabiam o que era voz passiva. E outra amiga bem mais jovem me deixou estupefata, quando no meio de uma conversa a respeito de um texto, me perguntou: “O que é que você chama de pronome?” Segundo Graciliano Ramos, a gramática é nossa primeira prisão, porém é inescapável – mesmo com nomes diferentes, as estruturas gramaticais devem ser examinadas e exercitadas. A língua portuguesa, a “inculta e bela”, possui suas regras peculiares que, embora apinhadas de exceções, devem ser obedecidas. No Livro do Desassossego de Bernardo Soares, Fernando Pessoa reclama de algumas pessoas que diziam ter contato com espíritos – como é que elas querem que eu acredite que dominam os espíritos, quando não conseguem dominar nem a gramática da língua portuguesa?

Será que a escola passou a exigir dos alunos um apanhado superficial de cada disciplina, sem lhes proporcionar o aprendizado miúdo, repetitivo, gradual de cada um de seus conteúdos? Talvez uma onda libertária equivocada que procura evitar todo e qualquer estudo cansativo, o que só pode gerar alunos incapazes de estudar. Uma tendência ainda agravada pela falta de seriedade na avaliação do aprendizado. Chega-se até a não reprovar alunos por receio do trauma da repetência.

Uma das críticas correntes ao ensino brasileiro atual é a doutrinação ideológica e política desde os primeiros anos escolares. Já existe uma forte reação a essa tendência em todo o país, que parte principalmente dos pais dos alunos. Tem-se incentivado um movimento chamado Escola Sem Partido, que tenta minorar os efeitos adversos de aprender a pensar de uma só maneira. O aspecto mais preocupante dessa camisa de força que enfiaram no ensino brasileiro é a chamada ideologia de gênero, porque nesse caso o martelo bate sem dó numa característica vital e essencial de todo ser humano, sua sexualidade.

Na área do ensino de português, encontrei alguns exemplos nocivos dessa interferência ideológica. Num livro didático para a escola primária, apresentava-se um longo texto explicando que as pessoas do povo falam errado, que isso é aceitável, que não se deve desconsiderar as pessoas por esse motivo, que tal atitude seria preconceituosa. E no meio da explicação aparecia um exemplo da linguagem popular – “Nóis pega os peixe”. Eu nem conseguia acreditar no que estava lendo, mas o livro era bem concreto nas minhas mãos e a frase popular não se apagava diante de meus olhos. Meus estudos de didática na universidade foram modestos, mas acho que basta o bom senso para saber que as crianças esqueceriam toda a lenga-lenga sobre a fala do povo na hora do recreio, mas gravariam na memória os erros da frase visualmente fixada.

Outro caso, que felizmente não passou de uma ameaça, foi uma proposta de mudança curricular. Parecia uma proposta surrealista, porque a orientação ideológica impedia que nas aulas de história os alunos aprendessem sobre os antigos egípcios, a civilização dos gregos, o Império Romano, a Idade Média, o Renascimento, a Revolução Francesa e muito mais. Quanto ao estudo da língua portuguesa, não fiquei menos perplexa. Os autores da proposta achavam por bem retirar os escritores portugueses das aulas de literatura no ensino médio. Os alunos leriam apenas autores brasileiros. Nesse nível de aprendizado, os estudos de literatura são apenas os primeiros passos de um conhecimento cultural de enorme alcance, mas as leituras marcam indelevelmente a formação do aluno. Que me desculpem, mas a proposta é imbecil, pois de uma coisa podem ter certeza, quem lê Eça de Queiroz jamais escreve “TRAZERÁ crescimento”.

Como não sou professora, os dados que apresento são apenas os que colhi de longe, por meio de comentários de colegas ou na imprensa. Aliás, quando vejo o estado atual da educação brasileira, eu me recrimino por não ter seguido a carreira docente. Sem talento para ser professora, ainda assim poderia ter contribuído para minorar o descalabro atual.

Pelo que tenho lido, já foi diagnosticado o mal que assola a educação brasileira, e procura-se recuperar o aprendizado dos conteúdos básicos, focando principalmente o ensino elementar. A pirâmide foi corroída a partir da base, e por isso precisa ser refeita a partir de seus fundamentos. Um grande problema é que a recuperação terá de ser realizada com o carro andando – impossível parar o carro, trocar a peça e retomar o andamento normal. Tudo terá de ser feito em tempo real e em multiprocessamento.

A medida necessária e urgente é que todos os brasileiros precisam retornar às carteiras escolares e estudar. Estudar muito e com gosto. Além dos pequenos do primário, dos adolescentes do ensino médio, dos jovens das universidades, todos os professores precisam voltar aos seus livros e pesquisas, porque os mestres são elos falhos na cadeia do nosso sistema educacional. A recuperação do ensino brasileiro passa necessariamente por melhorar a qualidade dos professores em todos os níveis escolares. Apesar de minha ignorância na área, arrisco uma sugestão – planejar um sistema de prêmios e incentivos ou estabelecer um excelente plano de carreira docente, para que a qualidade de nossos mestres e, consequentemente, de nossos estudantes se torne cada vez mais aprimorada. Quem sabe se em futuro próximo a escola pública não voltará a ser referência no ensino brasileiro.

 

14.05.2019 – Uma frase de Oscar Wilde

 

Muitas vezes lemos, no meio de ensaios e até reportagens, citações que nos detêm na correria do cotidiano e nos fazem refletir. O cérebro como que se volta para o interior e imprime novo ritmo à nossa busca de compreensão. A frase que hoje veio conversar comigo é do grande escritor Oscar Wilde, nascido na Irlanda como sói acontecer na literatura inglesa.

“We are all in the gutter, but some of us are looking at the stars.”

Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós estão olhando para as estrelas.”

 

A citação é da comédia de costumes Lady Windermere’s Fan de 1892.

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05.05.2019 – Palavras Sensatas num Mundo Insensato

 

Numa mensagem no twitter, Jim Rickards (James G. Rickards, advogado americano, autor de livros sobre questões financeiras – Currency Wars, comentarista de mídia – @JimRickards) escreve exemplarmente sobre as tão faladas mudanças climáticas.

“Climate changes slowly, has for eons. Humans can’t do anything about it except adapt, which we do extremely well.”

“O clima muda lentamente, tem mudado por eras a fio. Os humanos nada podem fazer a respeito exceto adaptar-se, o que fazemos extremamente bem.”

Está dito tudo o que se pode dizer a respeito das mudanças climáticas. E só Deus sabe o quanto precisamos de palavras sensatas em nossos dias.

O alarme apocalíptico sobre o aquecimento da Terra causado pela crescente emissão de COtraz em seu bojo um embuste retórico. O desastre climático iminente é provocado pelo homem, repetem autoridades científicas e políticas, sendo urgente tomar medidas que impeçam a catástrofe. Por baixo dessa declaração intimidadora, a retórica esconde um engodo capaz de seduzir a ansiedade humana – afirmam que existe um grave problema com o clima da Terra, causado pelo homem, portanto, sob controle humano. Os alarmistas estão na verdade assegurando que o homem pode controlar o clima da Terra. Isso é música para os ouvidos da humanidade, que custa a enfrentar que não passa de um nada invisível em cima de um “pálido ponto azul” (segundo a descrição da Terra dada por Carl Sagan).

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Só que uma dificuldade aguarda o mundo na esquina – a afirmação é falsa, o homem não pode controlar o clima da Terra. Como diz Jim Rickards, podemos apenas nos adaptar – e ele abre uma perspectiva otimista, quando diz que é algo que fazemos extremamente bem.

Nas considerações alarmistas sobre o clima, constato um erro grave – misturam dois níveis, o local e o global, como se fossem idênticos. Em nível local, a ação humana tem forte impacto sobre o meio ambiente, e os cuidados ecológicos são imprescindíveis. Em nível global, as forças em ação estão geralmente além do alcance humano, e muitas das teses científicas se perdem em especulações.

O homem não pode controlar o clima da Terra, mas ele pode cuidar de seu meio ambiente, evitando a atitude suicida de destruir seu habitat. Em outras palavras, as medidas para melhorar as condições da vida humana estarão sempre em nível local. Achar que podemos influir na natureza em nível global – positiva ou negativamente – é pretensão e água benta.

Muitos afirmam que os ataques ao meio ambiente são fruto da ganância humana, do terrível capitalismo. A observação da realidade aponta em sentido contrário, porque os países livres do Ocidente são os que mal ou bem adotam cuidados ecológicos, enquanto os países controlados por regimes totalitários não dão a mínima para a ecologia. Basta pensar no estado do meio ambiente na Alemanha Oriental, na poluição colossal na China, num Chernobyl que causou tantos danos por não dispor de um sistema de prevenção eficaz.

Sem entrar no exame da adaptação humana ao meio ambiente ou da adaptação do meio ambiente aos humanos, cumpre mencionar a busca científica atual de fontes de energia limpa. Um trabalho de longos anos e de muitas tentativas e erros, que ninguém se iluda. Os experimentos com energia eólica e solar, por exemplo, não estão apresentando resultados satisfatórios. Mas é um esforço digno de nossa busca de conhecimento. E as palavras de Jim Rickards estimulam o nobre esforço:

Ao clima os humanos só podem “adaptar-se, o que fazemos extremamente bem.”

 

06.04.2019 – Sobre “Instinto de Nacionalidade” de Machado de Assis

 

 

Em 1873, um jovem Machado de Assis de 34 anos escreveu um ensaio crítico sobre a literatura brasileira então nos seus primórdios. Deu ao seu estudo o nome de “Instinto de Nacionalidade”, que definiu como “o geral desejo de criar uma literatura mais independente”.

E advertia: “Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.”

Na literatura de seu tempo, já vislumbrava uma tendência a essa desejada independência na escolha de temas próprios da terra, o que ele chama cor local. Analisava com muita propriedade o tema do índio que era então explorado nas obras de Gonçalves Dias, José de Alencar e outros. Afirmava:

“É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os títulos de nossa personalidade literária.”

Mas ponderava que essa constatação não exclui os índios das páginas literárias, por serem um tema capaz de inspirar os escritores. E continuava lembrando que a paisagem exuberante das terras brasileiras não só estimula como desafia o estro de nossos poetas e prosadores.

Alertava, entretanto, que essa primeira fase de explorar a cor local devia ser ultrapassada, e propunha a questão da brasilidade em termos que ainda não foram superados nem mesmo neste nosso século XXI. Dizia:

“O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.”

E explicitava o que estava querendo dizer:

“Um notável crítico da França, analisando há tempos um escritor escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem falar sempre de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo, e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior, diverso e melhor do que se fora apenas superficial.”

Machado de Assis vai fundo no que constitui a cultura de um grupo humano. Ele sabe que os aspectos exteriores são apenas faceta vistosa, muitas vezes incapazes de revelar a trama sutil das vivências que urdem o tecido do convívio humano.  Por isso diz que a personalidade literária brasileira não será encontrada na beleza variegada de nossas paisagens, no caudaloso Amazonas nem nos córregos que enfeitam as várzeas, nem tampouco nos costumes pitorescos de cada região.

Apesar de os brasileiros terem uma forte inclinação para a anarquia do carnaval, a brasilidade não precisa vestir fantasias para se realizar. Deve ser antes buscada no sentimento interior dos que habitam esta terra. Como diz Machado de Assis:

“… e perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e o Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês.”

Isto é, os brasileiros podemos nos fantasiar de dançarinos de tarantela, messalinas, super-heróis, arlequins e pierrôs que a brasilidade íntima acabará se revelando entre os panos e véus.

Já se passou mais de século desde a publicação do ensaio machadiano, e muitas obras de nossa literatura percorreram o caminho da busca de nossa brasilidade intrínseca, inclusive a própria obra de Machado de Assis. Duas realizações sobressaem nessa procura, dois grandes escritores que se debruçaram sobre o sertão brasileiro, Euclides da Cunha e João Guimarães Rosa.

“Os Sertões” relata a luta que se desenrolou em Canudos, região norte da Bahia, no final do século XIX, entre as forças governamentais e os rebeldes aglomerados em torno de Antonio Conselheiro.  O livro se divide em três partes: a terra, o homem e a luta. Na primeira, Euclides da Cunha está longe de criar apenas a cor local com a descrição da catinga nordestina. A sua apresentação geográfica é dramática, a natureza revelando o embate das grandes forças em ação na região. Ao falar do homem na segunda parte, Euclides recorre às teorias correntes no seu tempo para tentar caracterizar os seres humanos que habitam o nordeste brasileiro. Emula o cientista que se debruça sobre seu objeto de estudo com lupas especiais, sem se preocupar em verificar a precisão das lentes. E ao descrever a luta em Canudos na terceira parte, Euclides parte ao encontro de uma realidade que até então desconhecia. A tarefa que se propusera realizar era reportar o conflito que se desenrolava na região, mas o repórter se viu às voltas com a descrição de um país que era o seu, mas que lhe era estranho. Euclides da Cunha vinha tornar visível o hiato entre os brasileiros e eles próprios, focalizando a distância concreta entre o Brasil litorâneo e o Brasil dos sertões. Mais uma descoberta do Brasil, numa lista que não parece ter fim.

João Guimarães Rosa é outro desbravador da realidade brasileira. Em sua obra, vamos encontrar de novo as lacunas concretas de nossa cultura fragmentada, e a busca de conhecer um Brasil envolto num sertão que adquire contornos míticos. Ele vivencia esse confronto com o país desconhecido no âmbito da linguagem. No seu livro de estreia, Sagarana, ainda coloca entre aspas as expressões e frases idiomáticas com que entrava em contato na paisagem mineira. Mas nos livros seguintes, a linguagem já se metamorfoseia para tentar revelar a fusão de idiomas diversos, uma multiplicidade barroca abrindo-se em tudo quanto é direção. A leitura de João Guimarães Rosa proporciona encontros e desencontros brasileiros, estonteante a diversidade das veredas a serem trilhadas pelo grande sertão.

E que dizer do próprio Machado de Assis? Ele ajustou suas lentes sobre o ambiente urbano, seguindo uma linha já experimentada por Manuel Antônio de Almeida em seu Memórias de um Sargento de Milícias. E coerente com o que escreveu em seu ensaio de 1873, não se deteve no superficial, nem deixou que os clichês e a cor local embaçassem sua visão. Procurou transpor o hiato entre o brasileiro que vive uma realidade e o brasileiro que se vê vivendo essa realidade com toda a sutileza de sua ironia. Num de seus romances, Quincas Borba, caricaturou a Belle Époque no Rio de Janeiro, os brasileiros macaqueando os costumes, os trejeitos, o luxo, as modas de Paris. Mas esses quadros gerais são apenas contrapontos aos indivíduos que têm sua trajetória acidentada traçada em busca de algum ou nenhum sentido para suas vidas. De suas histórias relatadas com muita ironia é que tende a brotar o encontro com o brasileiro.

O interessante é observar a reação dos leitores aos romances de Machado de Assis. A maioria dos brasileiros trata Machado como se fosse bicho raro, alguma coisa que não conseguem compreender muito bem. Declaram que ele não falou dos brasileiros, mas escreveu histórias universais. Pasteurizam Machado de Assis e sentem-se aliviados por serem capazes de guardar o incômodo em gavetas emperradas. Os leitores ainda procuram nas letras a cor local, os aspectos exteriores mais fáceis de serem assimilados. Preferem ler Jorge Amado que criou vários romances redigidos, com todo o devido respeito, quase que para turistas. E mesmo a ironia de um Lima Barreto, a carnavalização de um Mario de Andrade parecem mais palatáveis por se manterem à tona sem se embrenharem nos caminhos iluminados pela luz oblíqua de Machado de Assis.

A caricatura da Belle Époque no Rio de Janeiro traçada por Machado de Assis talvez nos conduza a uma possível compreensão dessa incapacidade de os brasileiros saberem de si mesmos, de irem além dos aspectos exteriores. Com as honrosas e múltiplas exceções – por exemplo, o estudo de Gilberto Freyre em Casa Grande Senzala – os brasileiros tendemos a ver o Brasil com lentes estrangeiras adquiridas em Paris, nos Estados Unidos, na Europa, nos grandes centros culturais do Ocidente. Essa visão de fora trai a realidade, e por isso recuamos assustados quando um Euclides da Cunha ou um João Guimarães Rosa nos mostra um país desconhecido. Ou quando um Machado de Assis nos convida a acompanhá-lo numa busca de nós mesmos.

A verdade muito amarga é que o alerta do artigo machadiano sobre Instinto de Nacionalidade não perdeu sua validade. Neste século XXI, os brasileiros ainda não sabemos de onde viemos, quem somos, para onde vamos. Ele avisou que nossa independência “não se fará num dia” – ainda tarda o cumprimento de nosso destino.

 

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